O Brasil estava sob a ditadura militar e o presidente do Botafogo, entre 1976 e 1981, Charles Borer, apoiava aquele regime. Em 1977, o Botafogo perdeu sua sede em General Severiano, tomada pela então forte estatal militar Vale do Rio Doce. Às custas de sua sede histórica, tendo sido o único clube brasileiro a quitar suas dívidas previdenciárias, o Botafogo, paradoxalmente, tem hoje um enorme débito com a Previdência Social.
Abandonada, nossa até então famosa divisão de base não estava revelando ninguém. O time principal andava mal e amargávamos mais de uma década sem um título. A cada derrota, a torcida, liderada por Russão, encostava nas grades da cadeira especial e puxava dois gritos: “fora Borer!” e “êêêê, sou Botafogo, estou cansado de sofrer”.
Nesta época, eu participava de duas lutas: pela liberdade do Botafogo e pela liberdade do Brasil. Minha família ansiava pela volta de tia Verinha, banida do país, que havia saído daqui em cadeira de rodas, de tanto que sofreu no pau-de-arara e outras terríveis torturas.
Minha avó, que também havia sido presa pela ditadura, queria me presentear com uma bateria. Porém, além de meu negócio não ser exatamente rock, e sim, samba, meu pai não permitiria a entrada daquela “barulheira” em nosso apartamento. Com os instrumentos da bateria de samba doados por minha avó, com apenas 13 anos, decidi fundar uma torcida organizada. Assim surgia a FOGO LIVRE, nome que caracterizava tanto a luta pela liberdade do Botafogo e quanto do Brasil. Com apenas 10 componentes, eu era o presidente dessa “imensa” organizada.
Mas o controle no clube era tamanho que, para se fundar uma torcida, era necessário solicitar permissão à diretoria de Charles Borer, através da ASTOB - Associação das Torcidas Organizadas do Botafogo -, presidida por Pedro Memória, um cara simpático, mas que não tinha qualquer vínculo com as organizadas. Acho que não entenderam a crítica presente no nome, daí a torcida ter sido autorizada.
Começamos, então, um movimento da torcida contra Borer. Pichávamos o muro do clube e saíamos correndo, com as mãos cheias de fichas, direto para um orelhão, de onde ligávamos para vários jornais, e o primeiro deles era sempre o `Jornal dos Sports`. Por essas ações, combinadas aos gritos nas arquibancadas, a torcida do Botafogo mobilizava a cidade em sua luta pela liberdade. Borer começou a se movimentar e criou os chamados “boreméritos”, conselheiros beneméritos biônicos e vitalícios, nomeados por ele, a fim de obter maioria no Consellho Deliberativo e se perpetuar na presidência.
João Saldanha, um verdadeiro Benemérito, era contra Borer. A cada vez que a bandeira do fogão estava hasteada a meio pau, ele comemorava dizendo que aquilo deveria ser sinal da morte de algum conselheiro daquela ditadura no Botafogo.
Foi daí que nasceu o movimento pelo impeachment de Charles Borer. Precisávamos de 200 assinaturas de sócios para pedir sua desitituição. Colocamos várias mesas de assinatura pela cidade, nas ruas Miguel Lemos, General Severiano, Sete de Setembro, dentre outras, e conseguimos coletar um número bem superior ao necessário, além de milhares de assinaturas de apoio dos torcedores. Conseguimos entrar com o pedido e, apesar do Conselho, dominado pelos “boreméritos”, não haver aprovado o impeachament, saímos mais fortes daquela luta.
Surgiu então o movimento BFR – Botafogo Força e Renovação -, cuja chapa disputou e venceu as eleições em 1981, levando à presidência Juca Mello Machado. Até hoje, não entendo a razão de terem lançado alguém pouco conhecido, ao invés do advogado Luiz Fernando Maia, candidato natural a presidente do movimento. São curiosas as semelhanças entre a história do Botafogo e a do Brasil, tanto durante a ditadura quanto na abertura, pois o país foi dormir com Tancredo e acordou com Sarney na presidência da República.
De fato, a relação da história do Botafogo com a do Brasil é mais que umbilical. Nosso jejum começou exatamente quando entramos no pior período da ditadura militar, em 1969, já que o último título havia sido no ano anterior.
Assim como o país sofreu durante vinte anos uma ditadura militar, o Botafogo sofreu vinte anos sem um título. Em 1989, enquanto os brasileiros começavam a viver os ares da democracia, pois elegeriam um Presidente da República por voto direto, na memorável noite de 21 de junho, solstício de inverno, após duas décadas de jejum, o grito de liberdade dos botafoguenses ecoava por todo Rio de Janeiro e Brasil: É CAMPEÃO!
ANDRÉ BARROS