quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A relação entre finanças, dívida e lutas pela moradia do quadradodosloucos texto de Bruno Cava

Há uma percepção generalizada que o sistema financeiro é responsável pela crise da economia global. A culpa estaria no excesso de ganância dos mercados, na especulação em detrimento do desenvolvimento, do risco moral e individualismo por parte dos financistas e banqueiros. Essas leituras da crise de uma forma ou de outra costumam conferir um grau de separação entre a “economia real” e as finanças. Como se a saída da crise estivesse em voltar a valorizar mais a primeira. Por isso, prescrevem maior atenção no desenvolvimento do chamado “setor produtivo”, enquanto o “setor financeiro” exigiria maior regulamentação por parte dos estados. Essas leituras deixam de analisar a fundo o vínculo orgânico entre finanças e produção.

Como funciona esse vínculo?

No mundo hoje, a maior fatia do dinheiro não se compõe do papel-moeda como o conhecemos, mas de dívida. É que o dinheiro também é gerado quando bancos emitem débitos sobre si mesmos, virtualmente do nada. As instituições bancárias possibilitam que o dinheiro exista não só como meio de pagamento atual, mas também como promessa de pagamento. Dessa maneira, o sistema financeiro capitaliza o futuro, o que se dá com a emissão de títulos de crédito que representam essas promessas. Ocorre uma entrada antecipada de liquidez (mais dinheiro), atrelada ao pagamento futuro da parte dos tomadores do crédito.

Por exemplo. O sujeito resolve comprar um apartamento a crédito. Vai ao banco, que, preenchidas certas condições, resolve financiar a totalidade do preço de compra. Em contrapartida, é constituída uma hipoteca ou alienação fiduciária. O sujeito recebe todo o dinheiro agora, mas fica vinculado ao pagamento de prestações periódicas, acrescidas de juros e correção, até conseguir quitar o montante total.

Contrariamente ao senso comum, esse fluxo de investimento não está lastreado em alguma riqueza pré-existente. O banco cria o dinheiro ao emprestá-lo ao financiado. A bem da verdade, cria muito mais dinheiro do que o valor efetivamente emprestado. Porque o título correspondente à hipoteca ou fidúcia se desdobra noutros títulos, os derivativos (ou títulos de crédito derivados), que também circulam. Por exemplo, os derivativos que representam a securitização do crédito inscrito no papel original. Por securitização, se entende a repartição sistemática dos riscos (de o devedor não pagar, ou quitar antes da hora, cortando os juros). Isso geralmente ocorre entre o banco que financiou e outras instituições financeiras, como fundos de pensão, fundos de investimento, dívidas públicas etc, que julgam interessante participar do risco para também colher uma fração dos juros e rendimentos.

Essa multiplicação de produtos financeiros injeta ainda mais liquidez, mais dinheiro, mais base monetária para a economia. No final do ano passado, o mercado global de derivativos totalizou US$ 1.200 trilhões (ou 1,2 quatrilhões de dólares), muito mais que o PIB mundial (US$ 70 trilhões) e 50% mais que o volume existente quando da disparada da crise dos subprimes, em 2007-08 (quase US$ 800 trilhões).

Mas o que isso significa?

Significa que o bom funcionamento da economia global está subordinado ao cumprimento das promessas que originam os títulos. Esses fabulosos fluxos de investimento só podem vingar se, no refluxo, na hora das cobranças, acontecer o esperado pagamento das parcelas prometidas. O verdadeiro lastro sobre o dinheiro não é o ouro, o papel-moeda, o banco central, o PIB atual ou outra medida de riqueza existente, mas a confiança. A confiança integrada no próprio sistema financeiro em ser solvável, em garantir a solidez das dívidas e sua titularização, o ritmo equilibrado entre fluxos e refluxos de crédito e débito. Todo o jogo não está baseado na moralidade ou equivalência das operações financeiras, mas no poder de vincular e controlar o futuro, isto é, de governar a não-equivalência, o surplus.

Voltemos ao exemplo do apartamento financiado. Quando o sujeito se dirige ao banco, precisa comprovar a sua capacidade de sustentar os pagamentos ao longo do tempo. Se ele apresentar as credenciais corretas, o banco concorda em emitir o crédito (o dinheiro). Esse dinheiro está lastreado, portanto, na expectativa do futuro dessa pessoa, bem como na capacidade de essa expectativa ser garantida (pelo judiciário, polícia, pela construção de uma moral). Quanto mais “sob controle” esse futuro estiver, quanto mais confiável, menor o risco do investimento, e o risco sistêmico como um todo. O mercado de futuros e derivativos, portanto, reflete a capacidade de o banco prever, vincular e controlar o comportamento da massa de endividados, a fim de gerar rendimentos (os juros) para os credores. Com o desmonte do estado de bem estar social, a popularização do crédito se torna cada vez mais o caminho preferencial para a pessoa ter acesso à moradia, a transporte (leasing, prestações), à previdência (fundo de pensão), ao consumo (cartão de crédito), ao turismo, à saúde (plano de saúde), à educação (bolsas) etc. A massa de endividados tende cada vez mais a coincidir com a massa de trabalhadores.

Daí que, no fundo, essa confiança sistêmica está baseada na capacidade de extrair uma renda da massa de trabalhadores, por meio dos juros. A confiança em questão consiste no poder de o sistema pôr as pessoas para produzir e trabalhar, e assim permanecerem solváveis, bem como em garantir que elas paguem. Elas precisam trabalhar para gerar um excedente de seus rendimentos para o pagamento periódico dos juros e, futuramente, do principal da dívida. Assim, o lastro do dinheiro-crédito não reside na moralidade ou eficiência do sistema. A confiança, no fundo, reside na capacidade de o governo e o sistema financeiro exigirem e obterem de nós, os devedores, que trabalhemos e produzamos ininterruptamente um fluxo de excedente, um retorno garantido, um mais-valor.

Não se trata de um jogo equilibrado entre oferta e demanda. Há uma assimetria no vaivém de fluxos e refluxos. De um lado, a classe rentista; do outro, a devedora; e entre elas uma permanente transferência de renda. O sistema financeiro sempre fica com um a-mais, na figura dos juros. Menos por ganância do que por uma exigência funcional de lastrear a monetização da economia e acumular riqueza aos investidores, reproduzindo relações sociais desiguais. Correm em paralelo dois processos intrinsecamente conectados: crédito/finanças de um lado, produtividade social do outro, e a forma dessa conexão orgânica é a base da economia real mesma, o capitalismo. Um e outro processo se mobilizam reciprocamente, governando as populações e vinculando os comportamentos ao funcionamento geral do sistema.

Contrariamente ao que pregam alguns economistas, o desequilíbrio atual, a crise não nasceu no fato de um lado ter inflacionado de modo desproporcional ao outro. O desequilíbrio é intrínseco desta forma de organização social e reside no fato que o lado da produtividade social, do trabalho vivo, precisa estar implacavelmente vampirizado e controlado, e que a expansão das rendas e a acumulação das riquezas estarem determinadas essencialmente pelo endividamento e exploração do trabalho das populações. Se a confiança sistêmica se baseia neste processo assimétrico, o pretendido “equilíbrio” só poderia mistificar a relação de força e controle social, essencialmente desigual, que faz funcionar a economia real contemporânea, que é a economia financeirizada.

Dito isto, a moradia é privilegiada para a governança social do capitalismo por dois motivos.

Primeiro, por ser um desejo quase universal e envolver um investimento substantivo a ponto de vincular a família a compromissos sérios de trabalho, produção e estabilidade. Segundo, por facilitar escaladas de sobrevalorização associadas a projetos urbanísticos de revitalização (gentrificação, remoção de pobres) pelo poder constituído. Não admira a expansão do crédito e da base monetária vir acompanhada de um inflacionamento desarrazoado dos preços dos imóveis e aluguéis, a partir de uma ação coordenada entre governos, imobiliárias e bancos de investimento. Tem-se assim um modo eficaz de fechar o circuito capitalista entre rentismo, propriedade e trabalho.

Portanto, a moradia e em maior escala a metrópole se torna um terreno extremamente interessante na perspectiva dos movimentos sociais. Pelo mesmo motivo de sua centralidade como elemento da governança, mas invertido. A retomada do poder sobre a produção (presente e futura), dessa potência líquida que as finanças exprimem, encontra nas lutas da cidade um front estratégico. Foi o que aconteceu nos EUA e na Europa, onde a insurreição foi em boa parte pautada pela questão da moradia, qualificando os movimentos insurgentes, no 15-M e no Occupy. E é o que pode suceder no Brasil, com tantos projetos de gentrificação e inflação imobiliária em curso. Embora, dentro do contexto mundial, por aqui a financeirização (ainda) não se encontre num estágio crítico de refluxo, é desejável, desde já, compreender as lutas pela moradia como contrapoder ao controle que as finanças exercem sobre o trabalho da metrópole. Expor e desenvolver o vínculo entre finanças e produção é indispensável para o presente horizonte de lutas.

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Recomendados:

Tudo que há por trás do projeto Nova Luz, por Ermínia Maricato, no Outras Palavras

A crise da economia global, As finanças causaram a crise global? e Planeta Dívida, neste Quadrado

A economia da dívida e o leviatã imobiliário e Cracolândia, drogas, mercado imobiliário e governança da metrópole, por Hugo Albuquerque, no Descurvo

A crise do crédito global, vídeo do youtube

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

PUXE A MARCHA DA MACONHA EM SUA CIDADE!

As Marchas da Maconha pelo Brasil foram o alicerce para o Supremo Tribunal Federal garanti-las em 2012. Política se faz e acontece na rua, política é viver a vida em movimento. A Constituição Federal reza acerca das liberdades individuais de reunião e manifestação de pensamento. Trata-se de garantia instrumental, palco da potência da multidão, meio para o exercício de tantos outros direitos, fundamento republicano essencial da dignidade da pessoa humana. A praça pública e as ruas são o cenário de nosso cotidiano, mas seus principais momentos são os atravessados pela potência da multidão em movimento, como na Marcha da Maconha. No inciso XVI de seu artigo 5º, nossa Lei Maior protege este fenômeno, já que esta Carta Política veio após a ditadura militar, período em que o encontro das pessoas nas ruas em torno de ideias era proibido. As reuniões já eram historicamente impedidas, em nossa raízes monárquicas, durante a escravidão. Na ditadura militar, o encontro político na rua levava imediatamente as pessoas à prisão e à tortura.

Os fatos comprovam a força política do encontro na rua. Em 2009, impulsionados pela proibição de 10 (dez) Marchas da Maconha pelo Brasil naquele ano, André Barros, autor desse texto, Gerardo Santiago e Renato Cinco, protocolaram na Procuradoria-Geral da República uma representação denunciando o desrespeito aos referidos preceitos constitucionais fundamentais por parte daquelas recentes decisões judiciais proibicionistas e abusivas.

No calor das proibições das Marchas da Maconha, ainda em 2009, a Procuradora-Geral da República Deborah Duprat, exercendo interinamente o cargo, moveu duas ações no Supremo Tribunal Federal. Atacando o artigo 287 do Código Penal, uma das ações objetivava impedir interpretações no sentido de que a Marcha da Maconha é apologia ao crime, ou ao criminoso, para garantir as marchas subsequentes. Com a intenção de erradicar por completo qualquer possibilidade de abuso de autoridade por parte dos proibicionistas, a Procuradoria fez também uso da Ação Direta de Inconstitucionalidade, visando impedir qualquer interpretação no sentido de que a Marcha da Maconha consiste em induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga, conforme tipificado no § 2º do artigo 33 da Lei 11343. Em outras palavras, ambas ações da Procuradoria pediam que o STF interpretasse o caso em tela (em inglês, ‘on canvas’) baseado na Constituição, que garante a todos o direito de reunião, sem armas, em locais abertos ao público, a fim de se defender pacificamente a legalização da maconha.

Foi a Marcha da Maconha de São Paulo, em maio de 2011, que chamou sua atenção, levando o STF a colocar em pauta e dar provimento, em 15 de junho, à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 187 e, em 23 de novembro, à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4274.

Naquela histórica tarde de maio, no centro de São Paulo, jovens foram atacados covardemente por uma polícia, diga-se de passagem, apoiada por grupos fascistas. No entanto, eles continuavam a Marcha da Maconha, jornada que se encaminhou para a porta da delegacia, tendo terminado com a liberdade de ativistas presos. Neste mesmo instante, tive a honra de proferir um discurso em defesa da ADPF 187, pedindo que o STF julgasse nossa causa, assim como estava escrito na enorme faixa, resistindo à intensa perseguição, empunhada ao longo de toda a Marcha.

Ainda em 2011, a Defensoria Pública de São Paulo recorreu de uma condenação de 3 meses de prestação de serviço à comunidade em porte de 1 grama de maconha. O tema em debate é a inconstitucionalidade do crime de consumo de drogas, pois esta viola as garantias da intimidade e privacidade do consumidor, que estaria, no máximo, agredindo a sua própria saúde, sem ferir terceiros nem a saúde pública.

Em 9 de dezembro de 2011, o STF acenou para o movimento. Seu Plenário Virtual reconheceu que a criminalização do porte de droga para consumo pessoal consiste em caso de repercussão geral.

Se inundarmos as cidades brasileiras de Marchas da Maconha, vamos criar as condições políticas para o Supremo Tribunal Federal entrar para a história, descriminalizando o consumo da maconha no Brasil, ainda esse ano. No momento, esta relevante decisão está nas mãos do Ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário 635659 (segue link: RE 635659).

Acabo de assistir a imagens de Rita Lee sendo brutalmente desrespeitada. Em seu último show, a rainha do rock vê sob seu nariz, na frente do palco, a polícia militar prendendo pessoas que estavam fumando maconha na plateia. Então agora a polícia quer proibir o consumo de maconha num show de rock, ainda mais no da Rita Lee? Será que não estão acontecendo crimes graves, tais com homicídios, latrocínios, enquanto a polícia está prendendo quem fuma maconha num show de rock? A falta de respeito da polícia com a nossa rainha do rock me envergonha. Mas, valeu, porque você continua a Rita Lee de sempre!

Assim, esperamos que o STF julgue o Recurso Extraordinário 635659 em breve e descriminalize o consumo da maconha no Brasil. Isso vai acabar com toda esta perda de tempo, até mesmo porquê, a polícia tem mais o quê fazer.

ANDRÉ BARROS, advogado da Marcha da Maconha
1/2/2012

Adv.André Barros