domingo, 16 de outubro de 2011

Rafinha não dançou por machismo, mas por mexer com gente rica

O integrante do CQC, que fez piada de péssimo gosto com Wanessa Camargo, já falara coisas piores. Agora mexeu com esposa de milionário, que ameaçou tirar anúncios da TV Bandeirantes. Ninguém classificou caso como atentado à liberdade de expressão. Já quando ministra condena comercial de lingerie machista, o coro é um só: “Censura”!

Gilberto Maringoni

Qual é o problema com a suposta piada de Rafinha Bastos? Ele antes já exibira todas as cores de seu mau gosto e nada acontecera.

Todos conhecem a pérola, não? O apresentador aproveitou-se de uma bola levantada pelo chefe da cena do programa Custe o que Custar (CQC), Marcelo Tas, sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, e cortou ligeiro: “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”. Foi logo acompanhado por risos e caretas de seus colegas de vídeo, Tas e Marco Luque .

A grosseria foi ao ar dia 19 de setembro. A TV Bandeirantes, que exibe o programa, levou duas semanas para decidir o que fazer. Em 3 de outubro, o apresentador foi suspenso da bancada. Não se sabe se voltará.

Não foi a primeira vez que Rafinha exerceu sua – digamos - sutileza. Em entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2011, ele saiu-se com esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”.

A gracinha com as feias não rendeu ao gaúcho de dois metros de altura nada além de protestos de movimentos femininos. Mas a liberdade com a cantora custou-lhe até agora, além do posto no programa, o cancelamento de shows e o rompimento de alguns contratos de publicidade. Rafinha perdeu grana com a brincadeira.

Pensamento vivo
Repetindo: qual o problema com as tiradas do rapaz de 34 anos, num universo midiático em que o mau gosto, a boçalidade e o “politicamente incorreto” passaram a ser valores em si?

Rafinha vive num tempo em que as demonstrações de preconceito, como as do apresentador de outro programa de entretenimento da mesma emissora, Boris Casoy, não têm consequências maiores. Todos se recordam da fineza do jornalista ao desqualificar dois garis que apareceram em seu programa para desejar boas festas, no final de 2009. Sem saber que os microfones estavam abertos, ele foi ao ponto: "Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho".

O artista do CQC também sabe que o pensamento vivo de gente como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) recebe destacada acolhida em grandes meios de comunicação. Sua entrevista à revista Playboy, em junho último, é pródiga em preciosidades. Segue um exemplo: “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”.

Outro luminar da intelectualidade midiática, o ex-compositor Lobão, por sua vez, exibiu os músculos cerebrais em um festival de cultura em São Francisco Xavier (São José dos Campos, SP), também em junho. Após demonstrar criteriosamente que toda a música popular brasileira não tem nenhum valor, ele sentenciou: “A gente tinha que repensar a ditadura militar. Essa Comissão da Verdade que tem agora. (…) Que loucura que é isso? Aí tem que ter anistia pros caras de esquerda que sequestraram o embaixador, e pros caras que torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não?”.

Os exemplos são infindáveis. Rafinha provavelmente é leitor de Reinaldo Azevedo, o blogueiro de Veja, que, em março de 2010, durante uma palestra no afamado Instituto Millenium, em São Paulo, externou sua particular concepção de liberdade de expressão: “A imprensa tem que acabar com o isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos”. Na mesma oportunidade, o cineasta aposentado Arnaldo Jabor lançou o desafio de “impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”. Impedir o pensamento... muito bom!

A baixaria televisiva contaminou até mesmo as campanhas eleitorais. Continuam na memória de todos os ataques da campanha de José Serra à Dilma Rousseff, em 2010, sobre o tema do aborto. Em Nova Iguaçu (RJ), Monica Serra, esposa do então candidato tucano, disse o seguinte sobre a petista: "Ela é a favor de matar as criancinhas".

Dois anos antes, a campanha de Marta Suplicy (PT) à prefeitura de São Paulo já havia colocado em dúvida a sexualidade de seu oponente, ao dizer: “Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde ele veio? Qual a história do seu partido?” Em seguida, aparece a foto do prefeito: “Sabe se ele é casado? Tem filhos?”

Bem acompanhado
Rafinha está em boa companhia. Deve se sentir incentivado para exercer seu rosário de preconceitos. Provavelmente pensa estar “quebrando paradigmas”, investindo contra o estabelecido e externando uma rebeldia adolescente, que lhe granjeia grande popularidade e bons cachês.

Ridicularizar e humilhar quem tem poucas chances de se defender, em uma sociedade com desigualdades abissais como a brasileira, é um grande negócio. Prova isso a lista de clientes dos shows do moço, que constam de sua página na internet. São elas Votorantim, Bosch, Agroceres, LG, HP, Ernst & Young, IBM, Banco Real, Vivo, Springer Carrier, Cargil, Unilever, Motorola, Chevrolet, Sherwin Williams, Valor Econômico, Bunge, GNT (Globosat), Jornal O Estado de S. Paulo, Coca-Cola, Bradesco, ESPM etc. Segundo a Veja, ele foi visto em mais de 730 comerciais somente neste ano.

Rafinha faz parte de uma tendência do humor televisivo, que se abriu após a chegada dos humoristas do Casseta e Planeta ao vídeo. A linhagem envolve também o programa Panico (da Rede TV!) e outros imitadores, além do Zorra Total, da Globo. Todos se dizem distantes da política, independentes e praticantes de um humor anárquico e sem freios. Nem mesmo a participação de Marcelo Tas como palestrante em um encontro da juventude do DEM ,em novembro de 2008, ou de Marcelo Madureira nas palestras hidrófobas do Instituto Millenium, os comprometem, segundo eles, com idéias que não as próprias.

Acima da cintura
Num panorama desses, repetimos: qual o problema de Rafinha Bastos?

O problema é que o garoto bateu acima da cintura.

Tudo bem desancar garis, a esquerda que foi à luta nos anos da ditadura, exaltar a parcialidade da imprensa e atacar homossexuais e outros grupos vulneráveis.

Não pode é investir contra o topo da pirâmide social.

Rafinha cometeu esse pecado. Wanessa Camargo é casada com Marcus Buaiz, 31 anos, herdeiro de um dos maiores conglomerados empresariais do Espírito Santo, o Grupo Buaiz, que completa 70 anos em 2012. O grupo é formado pela TV Vitória (afiliada da Rede Record), por duas rádios, pelo Nova Cidade Shopping Center, por várias empresas de alimentação (Café Número Um, Moinho Três Rios e Moinho Vitória), pela Buaiz Importação e Exportação, pela incorporadora Meca e pela Automóbile Comércio de Veículos, entre outras.

Marcus Buaiz transferiu-se para São Paulo, onde é proprietário de casas noturnas e restaurantes, além de uma empresa de marketing esportivo, a 9INE, em parceria com o ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Segundo o jornal A Gazeta, de Vitória, o empresário e seu sócio teriam ameaçado tirar anúncios do programa, após a performance de Rafinha Bastos. “Um comercial de 30 segundos no CQC custa 130 mil reais. Já um merchandising pode custar de 240 mil a dois milhões e 400 mil reais, sem incluir cachês”, diz a publicação.

Com tudo isso, a Bandeirantes podou Rafinha Bastos de sua programação.

Dois pesos
O curioso da história é que intenção semelhante, de retirada de um comercial de lingerie do ar, por parte da ministra da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, Iriny Lopes (PT), foi classificada como censura por colunistas de imprensa e até por colegas seus na Esplanada dos Ministérios.

Na peça, em três versões, Gisele Bündchen faz as vezes de uma esposa prestes a dar uma péssima notícia ao marido: estourou o limite do cartão de crédito, bateu o carro ou informa que sua mãe virá morar com eles. É um machismo digno dos anos 1950. Os publicitários da agência Giovanni+DraftFCB devem ter achado o máximo a própria criação. No clima de boçalidade modernosa, não há problema na mulher bonita, mas dependente do marido provedor, invocar seus atributos eróticos para conseguir o que quer.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, a representante governista assim se manifestou: “A propaganda caracteriza como correto a mulher dar uma notícia ruim apenas de lingerie e errado estar vestida normalmente. Essa definição de certo e errado caracteriza um sexismo atrasado e superado”.

A ação da ministra está a quilômetros de distância das ameaças que teriam sido feitas pelo marido de Wanessa Camargo ou pela ação da Bandeirantes, que sem mais tirou Rafinha do ar. Iriny apenas solicitou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) a suspensão da peça publicitária.

O mundo desabou sobre sua cabeça, com insinuações sobre estética feminina e inveja da modelo.

O caso Rafinha Bastos é pedagógico. No Brasil, além das mulheres, qualquer minoria pode ser atacada. Menos uma: a minoria dos endinheirados.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

MACLATA2 12/MAIO/2011

A PSIQUIATRIA BRASILEIRA E A CRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA


Em meados do século XIX, a psiquiatria lombrosiana chegou ao Brasil. Com o discurso pseudo científico do “criminoso nato”, a teoria afirmava que determinadas raças carregavam características naturais dos criminosos. Esse discurso criminalizou os negros, sua religião, sua cultura e o hábito de fumar maconha.

O consumo de maconha seria uma característica de criminosos que, sob seu efeito, praticavam condutas penais. Esse discurso avançou e caiu como uma luva com a abolição da escravatura em 1888. A liberdade passou a ser controlada pelo discurso do medo do criminoso nato, de maneira que antigos escravos e seus descendentes foram criminalizados. Em 1890, o governo republicano criou na polícia a Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação.

Esses psiquiatras brasileiros lombrosianos fizeram uma série de teses falsamente científicas criminalizando negros, nativos, mulheres, capoeiristas, sambistas, maconheiros, prostitutas, macumbeiros, cachaceiros, explorando certo tipo de discurso e linguagem e estigmatizando todos que não fossem supostamente brancos “puros”: era o embrião do discurso fascista e nazista da superioridade de raças.


A maconha foi acusada de ser o instrumento de vingança dos negros contra os brancos pela escravidão. Vale destacar o discurso do Dr. Pernambuco, delegado brasileiro, na II Conferência Internacional do Ópio, em 1924 em Genebra, em que o psiquiatra afirmou, para as delegações de 45 outros países: “a maconha é mais perigosa que o ópio”. Essa Conferência influenciou a criminalização da maconha em todo o mundo.


Filinto Muller, influente chefe da polícia política de Getúlio Vargas, declarou que a Umbanda não fazia mal a ninguém, mas invadia e quebrava todos os terreiros que insistiam no uso da maconha. Como a Umbanda queria ser reconhecida como religião e estava se estruturando, subtraiu o uso da maconha de suas práticas para obter esse reconhecimento. Teria sido aí o embranquecimento da Umbanda.


Até a próxima quarta-feira, às 4:20 horas, um abraço bem apertado!


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DAS REVOLTAS A UMA NOVA POLÍTICA Toni Negri e Michael Hardt

Toni Negri e Michael Hardt oferecem reflexões para superar três pilares do capitalismo: propriedade, trabalho subordinado e representação
*Prefácio à edição em castelhano de “Commonwealth — El proyecto de una revolución del común”
Por Toni Negri e Michael Hardt | Tradução: Daniela Frabasile
Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.
Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.
Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.
Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.
A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.
Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.
Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.
No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.
Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.
De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?
Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.
Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.
Mais:
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domingo, 2 de outubro de 2011

Plano Nacional de Banda Larga: os limites da negociação. Entrevista especial com Marcelo D’Elia Branco

Plano Nacional de Banda Larga: os limites da negociação. Entrevista especial com Marcelo D’Elia Branco

“A gritaria das teles aponta que há um lobby poderoso em cima do Ministério das Comunicações, em cima da Anatel, para que a neutralidade na rede seja abolida”, diz o consultor para sociedade da informação.

Confira a entrevista.



O Plano Nacional de Banda Larga proposto pelo governo federal brasileiro pretende expandir o acesso à internet banda larga a 40 milhões de pessoas no país. Mas as negociações do Ministério de Comunicações com as operadoras de telecomunicações têm causado mal-estar entre os defensores da neutralidade na internet. Entre eles,Marcelo D’Elia Branco, ativista pela liberdade do conhecimento e ex-diretor da Campus Party Brasil, que critica o “acordo” prévio o qual, segundo ele, pode garantir às empresas de telecomunicações a implantação do Plano Nacional de Banda Larga no país.

“O principal erro desse acordo é a tentativa de fazer com que as teles recebam dinheiro pelo volume de conteúdos acessados pelo usuário. Até hoje, dentro da lógica de funcionamento da internet, quem pode cobrar pelos conteúdos na rede é o gerador de conteúdo e não as operadoras. A partir do acordo firmado com o Ministério das Comunicações, as teles, além de ganharem pela largura da banda que oferecem, pela velocidade de transmissão, passarão a limitar a quantidade de conteúdo que o usuário pode baixar durante o mês”, explica ele na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Linepor telefone.

Branco também defende que estados e municípios participem do Plano Nacional de Banda Larga, já que os governos estaduais e municipais são os que mais gastam com serviço de telecomunicações e acesso à internet. “Qual vai ser a participação do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, no Plano Nacional de Banda Larga, visto que têm estruturas da Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE, da Cia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul – Procergs? O governo do estado tem investido muito dinheiro com serviços de Telecomunicações. (...) Se uma empresa tem uma conta gigantesca com um fornecedor, ela tem o poder de barganhar algumas vantagens em uma negociação. Com certeza o maior cliente de Telecom do Rio Grande do Sul é o governo do estado. Então, qual é o papel do governo Tarso nessa discussão?”

Marcelo D’Elia Branco foi por três anos diretor da Campus Party Brasil. Consultor para sociedade da informação, ele é fundador e membro do projeto Software Livre Brasil e também ocupa o cargo de professor honorário da Cevatec – Peru, além de ser membro do conselho científico do Programa Internacional de Estudos Superiores em Software Livre, na Universidade Aberta de Catalunha. Seu blog pode ser acessado pelo linkhttp://softwarelivre.org/branco.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste o Plano Nacional de Banda Larga – PNBL? Quais as vantagens e desvantagens do Plano, considerando-se a realidade brasileira? Ele apresenta metas e garantia de qualidade?

Marcelo D’Elia Branco – O Plano Nacional de Banda Larga é uma grande expectativa em função da importância que tem a banda larga para o desenvolvimento do país. Não se trata apenas de uma questão de acesso à internet. Da mesma maneira que o Brasil precisa resolver a questão de infraestrutura dos aeroportos, dos estádios de futebol para a Copa, precisa definir por onde vão trafegar as informações e como a estrutura de banda larga irá se expandir pelo país.

A banda larga no Brasil é muito cara, de baixa qualidade e não chega a todos os lugares como deveria chegar. Expandir o acesso à internet é o grande desafio. O Plano Nacional de Banda Larga, anunciado desde o governo do presidente Lula, gerou uma enorme expectativa na sociedade e talvez seja um dos projetos mais esperados do governo da Dilma.

IHU On-Line – Como vê o acordo firmado entre o Ministério das Comunicações com empresas de telecomunicações para que elas toquem o Plano Nacional de Banda Larga, e a notícia de que as teles foram autorizadas a reduzir a velocidade se o usuário ultrapassar 300 megabytes de download por mês? Esse acordo põe em xeque a democratização da internet?

Marcelo D’Elia Branco – Tenho críticas em relação ao acordo, pois ele tem pontos muito ruins. O lado positivo do acordo é ofertar uma banda larga de 1 MB por 35 reais, porque isso força a concorrência a oferecer internet com mais velocidade por um preço menor. Algumas operadores estão oferencendo 1 MB por menos de 35 reais.

Por outro lado, o plano tem aspectos negativos. Um deles diz respeito a quanto de 1 MB é real. A Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel tem que regulamentar essa questão. Parece que a Anatel está trabalhando na perspectiva de garantir que 60% da banda vendida pelas operadoras seja garantida como banda real.

O principal erro desse acordo é a tentativa de fazer com que as teles recebam dinheiropelo volume de conteúdos acessados pelo usuário. Até hoje, dentro da lógica de funcionamento da internet, quem pode cobrar pelos conteúdos na rede é o gerador de conteúdo e não as operadoras. A partir do acordo firmado com o Ministério das Comunicações, as teles, além de ganharem pela largura da banda que oferecem, pela velocidade de transmissão, passarão a limitar a quantidade de conteúdo que o usuário pode baixar durante o mês.

Essa possibilidade de limitar o acesso ao conteúdo quebra o paradigma da internet. O acordo define que 300 MB é o máximo que um usuário pode baixar no mês. Ao atingir 300 MB no mês, o usuário terá de navegar com uma velocidade muito baixa ou pagará um valor a mais à operadora para aumentar a velocidade de acesso à internet. Então, a operadora, além de cobrar pela velocidade, terá um taxímetro e cobrará pelo volume de conteúdo baixado – o qual não pertence a ela.

Esse acordo é inaceitável e o governo precisa revê-lo urgentemente, pois ele introduz um princípio de quebra da neutralidade na rede. As operadores de telecomunicação podem cobrar por qualidade de serviço, pela velocidade maior, mas não podem cobrar pelo volume de conteúdos que passam pela sua canalização.

1 MB não é compatível com a lógica da internet

O usuário do plano popular do governo (1 MB por 35 reais) terá duas alternativas: terá uma internet superlenta ou terá que pagar mais às operadoras para conseguir uma conexão mais rápida. Comercialmente, para as operadoras essa limitação de 300 megas no plano é um excelente negócio, porque certamente a maioria das pessoas contratará um montante extra. Espero que esse acordo das teles com a Ministério das Comunicações não seja um Plano de Banda Larga, mas sim uma primeira negociação do governo com as operadoras.

Quando falamos em 1 MB, estamos falando em download, ou seja, o quanto a pessoa terá de banda para baixar um arquivo. 1 MB tem apenas 128k de subida de sinal, o que significa isso? 128k é uma velocidade muito baixa dentro da lógica da internet, a qual não serve mais somente para ler e-mail e visitar sites. Hoje em dia, a internet é 2.0, é interativa, e os usuários da rede cada vez mais postam conteúdo. Com 128k é muito difícil postar vídeos no YouTube. O ideal é que a rede seja simétrica, que se tenha a mesma possibilidade e qualidade de baixar e postar conteúdos.

Lobby para acabar com a neutralidade da rede

Na semana passada iniciou-se um lobby muito forte em torno das teles. No Futurecom, em São Paulo, Ethevaldo Siqueira, que sempre defendeu a privatização da Telebras, foi porta voz das teles na seguinte afirmação: “Não é mais possível a internet brasileira crescer sem frear, diminuir velocidade ou sobrepassar conteúdos de vídeo na rede”.

O fluxo de informações que trafega dentro da internet não pode ser tratado de forma discriminada. Isto é, os conteúdos de dados que estão trafegando, seja audio, vídeo ou texto em linguagem html, não podem ter um tratamento diferenciado. Essa é a lei da internet. Todo arquivo que entra na rede disputa o tráfego com os demais conteúdos.

Antigamente, as operadoras de telecomunicações cobravam pelos serviços diferenciados: telefonia para São Paulo-SP custava um valor, telefonia para Canoas-RS, outro, vídeo tinha outro preço, etc. A internet não é uma rede de telecomunicações; ela veio para quebrar esse paradigma. A internet é neutra e esse é um princípio defendido por Tim Berners-Lee, o criador da web.

A afirmação de Ethevaldo Siqueira e a gritaria das teles aponta que há um lobby poderoso em cima do Ministério das Comunicações, em cima da Anatel, para que a neutralidade na rede seja abolida, para que não entre no Marco Civil como um direito do cidadão. As teles querem controlar o fluxo de informações dentro das redes. Assim, o vídeo do concorrente vai ser baixado de modo mais lento do que o vídeo do cliente da operadora, por exemplo.

IHU On-Line – Como vê o corte no orçamento da Telebras?

Marcelo D’Elia Branco – O corte do orçamento da Telebras é algo preocupante. Num primeiro momento, a presidente Dilma anunciou que a Telebras teria 1 bilhão de reais à disposição para investimento. Os parlamentares reduziram o valor para aproximadamente 300 milhões de reais. Esse orçamento não reflete a prioridade do Plano Nacional de Banda Larga e o papel da Telebras nesse processo de expansão. O orçamento destinado à empresa deveria ser maior.

Quero deixar claro que não acredito e não defendo que todo o Plano de Banda Largadeve ser conduzido pelo governo. O Plano Nacional de Banda Larga deve ser um esforço do poder público, incluindo uma forma de enquadrar o setor privado, para que tenhamos uma banda larga mais barata e de qualidade.

Com a redução do orçamento da Telebras, a empresa não consegue estimular, através dos serviços prestados, para que suas concorrentes privadas baixem o preço da tarifa da internet. Quanto mais a Telebras tiver a possibilidade de construir uma infraestrutura que concorra com aquela das teles privadas, o custo de acesso à internet será barateado.

O Plano Nacional de Banda Larga é um plano estratégico para o governo da Dilmae, portanto, deveria constar no PAC. É estranho que um plano anunciado como prioritário no governo federal não conste no orçamento do PAC. Para a aceleração do crescimento do Brasil, a expansão da banda larga é importante. Recursos do PAC deveriam ser destinado para a melhoria da banda larga.

Lei geral das telecomunicações

Algumas pessoas pensam que o governo federal deveria mudar o regime de exploração de banda larga, que hoje é considerado um serviço de valor agregado, um serviço privado. Se fosse um regime público, na visão dos defensores, seria mais fácil para o governo controlar esse serviço e enquadrar as teles. Não concordo com essa ideia de que o regime público seria a melhor saída para enquadrar o serviço de banda larga, pois isso criaria uma burocracia e uma série de regras de como e quais empresas poderiam prestar serviço de banda larga no Brasil. Essa ideia do regime público coloca uma barreira muito grande para pequenos e médios provedores de serviços de banda larga no Brasil.

Conversei com Cezar Alvarez, do Ministério das Comunicações, e ele disse que o acordo com as teles não consiste em um Plano Nacional de Banda Larga. Aconteceu apenas uma primeira negociação, mas o governo terá que pressionar mais as teles porque, nessa primeira rodada de negociação, as teles sairam ganhando.

IHU On-Line – Além da falta de investimento na Telebras, o que tem dificultado a expansão e o barateamento da internet no Brasil?

Marcelo D’Elia Branco – O que tem dificultado o barateamento e a expansão da internet é a falta de interesse comercial das operadoras. Elas não têm interesse em atender regiões onde, comercialmente, não obterão lucros. Não existe nenhum mecanismo que enquadre as teles para que elas cumpram um plano de metas.

Por outro lado, a ação da Anatel em São Paulo-SP, por exemplo, não é boa. E estamos falando da capital mais importante do país. Os usuários dos planos de banda larga reclamam que a conexão da internet cai com frequência. Falta firmeza da Anatel para cobrar qualidade dos serviços oferecidos por operadoras privadas.

Não há como fazer um plano de banda larga, no Brasil, a curto ou a médio prazo sem contar com as operadoras. Mesmo que vários governos começassem a operar no setor de telecomunicações, na oferta de banda larga para os usuários finais, mesmo que tivesse orçamento sobrando para isso – o que não é a realidade –, demoraria muito tempo para que a banda larga chegasse até o usuário final. Não é fácil construir uma rede de banda larga com fibras ópticas e rádios em um país com as dimensões do Brasil.

IHU On-Line – Além da utilização de recursos privados, em que consiste um aperfeiçoamento do Plano Nacional de Banda Larga?

Marcelo D’Elia Branco – Deveria haver mais participação dos estados e municípios, que são os principais interessados no Plano Nacional de Banda Larga. Não vi, no Plano Nacional de Banda
Larga, investimentos e tampouco cobrança e controle em relação à banda larga dos estados e municípios. Participei da construção da primeira rede de banda larga de Porto Alegre em 1998, a qual funciona até hoje com uma conexão de 150 MB.

Qual vai ser a participação do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, no Plano Nacional de Banda Larga, visto que têm estruturas da Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE, da Cia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul – Procergs? O governo do estado tem investido muito dinheiro com serviços de Telecomunicações. Por isso as contas, por exemplo, do Banrisul, da administração direta, das principais estatais em serviços de telecomunicações contratadas pelas operadoras privadas precisam ser um elemento de pressão em cima das operadoras para que elas prestem um serviço de melhor qualidade e com preços mais baratos. Se uma empresa tem uma conta gigantesca com um fornecedor, ela tem o poder de barganhar algumas vantagens em uma negociação. Com certeza o maior cliente da Telecom do Rio Grande do Sul é o governo do estado. Então, qual é o papel do governo Tarso nessa discussão?

IHU On-Line – A partir do Plano Nacional de Banda Larga, qual a expectativa em relação à inclusão digital?

Marcelo D’Elia Branco – As metas do governo de mais 40 milhões de pessoas terem acesso a banda larga é fantástico. Se o plano atingir as metas previstas, o Brasil será o país do futuro.

IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações do Movimento Mega Não?

Marcelo D’Elia Branco – A neutralidade na rede é a nossa principal luta nesse momento. Nos Estados Unidos, o FCC, que é a Anatel deles, sofre também uma forte pressão para quebrar a neutralidade da internet.

Existe um lobby das operadoras de telecomunicações privadas para se quebrar a neutralidade. Há uma preocupação no Brasil de que a Anatel passe a regulamentar a internet. O comite gestor da internet BRASIL é um exemplo de gestão para outros países e para a governança internacional da rede.

Seria inadmissível que um órgão como a Anatel passasse a regulamentar a internet no Brasil. A Anatel deve cuidar das teles, e está cuidando mal. A intenção das teles e daAnatel é padronizar a internet com uma lógica do passado e cobrar pela distância, pelo volume de tráfego.

IHU On-Line – Qual sua expectativa em relação ao 1º Fórum da Internet no Brasil, que acontecerá nos dias 13 e 14 de outubro, em São Paulo?

Marcelo D’Elia Branco – A expectativa é a melhor possível. Esse é um Fórum importante, organizado pelo Comitê Gestor da Internet. A nossa principal luta é reafirmar a neutralidade na rede e o apoio ao Marco Civil da internet, que foi enviado pelo governo federal ao parlamento brasileiro. Este texto foi construído de forma colaborativa, com a participação da sociedade civil durante todo o ano de 2010.

Para ler mais:

* A propriedade e o direito autoral em tempos digitais. Uma discussão. Revista IHU On-Line, no. 318, 07-12-2009
* Governo quer criar empresa para levar banda larga a todo o País
* Movimentos Sociais repudiam banda lenta, cara e sem universalização
* Telebrás acusa teles privadas de boicotar o plano de banda larga
* Brasil levará mais de três décadas para internet rápida atingir o topo mundial
* Plano Nacional de Banda Larga: complicações políticas frente a um reposicionamento do Estado
* Projeto prevê banda larga de R$ 15 a R$ 35

Adv.André Barros