domingo, 27 de março de 2011

De Caetanos, Cotas e Passeatas contra Guitarras Rodrigo Guéron

Tudo bem, o leitor pode começar se perguntando porque falo das cotas se nas colunas semanais de Caetano no Globo, como na imprensa em geral, essa não é o assunto up to date. De fato, o que anda em questão, e muito me interessa, é o debate em relação à gestão da ministra Ana de Holanda no Minc e uma espécie de, a meu ver, restauração conservadora que ela instaurou no ministério, aplaudida por Caetano e outros “medalhões celebridades” da indústria cultural no mesmo movimento em que eles atacavam, no limite da grosseria e da truculência verbal e política, a gestão Gil/Juca e o governo Lula.
E aqui para me explicar eu me complico, porque acho que no centro político deste debate, em especial para travá-lo com o Caetano Veloso, está o conceito de antropofagia. De fato, esta bela palavra, boa até de pronunciar, poderia até estar no título deste artigo. Trata-se, a meu ver, da mais importante colaboração do pensamento brasileiro em termos de uma criação direta e explícita de um conceito para o pensamento contemporâneo. Mais de meio século antes de começarem a falar de “multiculturalismo”, o conceito de antropofagia tem uma singularidade, uma força e uma generosidade para compreender o encontro e a relação entre as diferenças que parece já supor, por antecipação, a insuficiência e a relativa impotência, a despeito das boas intenções, desta noção de “multicultural”.
A inventividade de Oswald de Andrade foi buscar no ritual dos índios Tupinambás antropófagos uma alternativa a um debate marcado por uma polarização que ele percebeu tola e improdutiva. De um lado predominava nas nossas elites um absoluto desprezo por tudo que não era de origem européia, entendendo, é claro, a Europa como lhes era conveniente. Exemplar desta atitude foi o ato de Rui Barbosa que se retirou de uma recepção oficial quando Nair de Tefé,  primeira dama moderninha, tocou ao piano o “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga. Não satisfeito com o gesto, Rui foi ao Senado da República e discursou contra aquele tipo de música por ele definida como: “A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”. Uma história que diz bastante sobre que tipo de “modelo intelectual” foi escolhido como um de nossos “oficiais”. Do outro lado, havia um nacionalismo nativista, que poderia ser resumido na figura do índio Perí, personagem de Jose de Alencar: o bom selvagem que representava uma espécie de Brasil autêntico e puro.
Capturar o que há de melhor no outro, o máximo de sua força, na medida que o devoramos e digerimos, fazendo-o se misturar e constituir o que nós mesmos somos, a nossa força: esse é o sentido do ritual antropofágico. Este era levado a tal ponto pelos Tupinambás, que só eram oferecidos como alimento aos jovens guerreiros os mais fortes e dignos dos guerreiros inimigos capturados. Oswald, é claro, não estava sugerindo (a princípio...) que acrescentássemos a carne dos europeus e outros estrangeiros à dieta de nossos churrascos de domingo. Mas percebera, esperto, que a questão da diferença não passava por nenhum tipo de respeito politicamente correto (noção que nem existia), por uma simples contenção de nossos instintos perante as aparentes esquisitices do outro, nem mesmo por alguma condescendência que oscila entre uma compaixão cristã para com o supostamente mais fraco e uma arrogância eurocêntrica de quem se pretende numa missão para converter ingênuos nativos aos valores da “civilização”.
A antropofagia significa, de um lado, a rejeição completa da submissão, da subserviência, da impotência que se desdobra da mistificação e da crendice eurocêntrica simbolizada no ato de Rui Barbosa. Por outro lado, a antropofagia rejeita uma semelhante impotência que se desdobra de uma reatividade contra tudo que não for supostamente da minha “essência”, como uma determinação transcendente e imutável sem mobilidade, vida e história, que constituiria cada um e cada “povo”.
A idéia da antropofagia era ao mesmo tempo uma constatação do que já estávamos produzindo e uma proposta para o que deveríamos ser. “Só a antropofagia nos une”, palavra de ordem primeira do manifesto antropófago de Oswald, designava um encontro social de diferentes: uma espécie fusão afetiva naquilo que cada um havia de mais potente. A antropofagia expressa então um encontro na criação, a diferença pela diferença, como se os dois lados soubessem que não seriam mais iguais depois deste encontro, desejando e se realizando nisso : “só me interessa o que não é meu”.  Neste caso, de maneira talvez um pouco diferente dos Tupinambás, estaríamos diante de um alegre devorar-se mútuo.
Em meados dos inventivos, sanguinários, coloridos e obscuros anos 60, nos deparamos com uma situação não exatamente igual, mas que lembrava a que Oswald encontrou nos anos 20. Não exatamente igual porque havia, pelos menos inicialmente, uma potência bem maior no discurso “nacional’ que se desenvolvia em torno da cultura e da política do que naquele do antigo nativismo de Alencar. De fato, de uma maneira ou de outra, eram “artistas a procura de um povo”, movimento que enquanto é uma busca, um “por fazer”, pode liberar uma notável criatividade. No início, era uma literatura por fazer, e se fazendo; um cinema e suas imagens por fazer, e se fazendo; um modo de ser, um modo de cantar e de dançar, um modo de falar de si mesmo por se fazer, e se fazendo. De um lado era preciso inventar, de outro era preciso prestar a atenção no que já era feito bem antes destas formulações intelectuais.  Neste último caso estava por exemplo o samba, como uma força e uma singularidade notável surgindo como o reverso da impotência dos herdeiros da mais ultrajante das situações humanas: a escravidão e a miséria social dos negros e mestiços no Brasil. Intelectuais de classe média em torno do CPC (Centro Popular de Cultura), diretores do cinema novo (intelectual e artisticamente hoje quase todos mortos, vivos ou não) se inspiravam no conceito do “nacional popular”, como expressão dessa suposta “alma” que emergia do povo e que, politicamente, seria a parte “cultural” de uma resistência a um sistema econômico internacional que o submetia e explorava. Que o cinema novo, por exemplo, tivesse revelado as imagens nuas e cruas da pobreza ou, com pelo menos 30 anos de atraso, o sambista sem o verniz estilizado das chanchadas ( que também tiveram grande força e importância), essa era a força do “nacional popular”. Os próprios sambistas, mesmo que o samba não tivesse quase nenhum vestígio de nacionalismo antes do Estado Novo, se orgulhavam, num ato político de inversão do lugar que os haviam relegado, de representar a tal “cultura nacional autêntica” .
É claro que o nacionalismo também encontrava justificativa como contraponto à velha tendência eurocêntrica de desprezar tudo que aqui se produzia, tão presente como no tempo de Oswald. Mas foram sobretudo os intelectuais de classe média que acabaram produzindo clichês, mistificações, e uma essencialização de certa forma folclorista e elitista na noção de “cultura nacional”. É nesse contexto conturbado, onde as contradições se tornam dramáticas por um golpe militar que anuncia uma época de repressão e violência política, que corajosamente um outro grupo de “artistas-intelectuais” retoma com força a idéia de antropofagia. Esse grupo, logo autodenominado de “tropicalistas”, era formado, entre outros, pelo próprio Caetano Veloso, por Gilberto Gil, Tom Zé, mas passava também pelos poetas Augusto e Haroldo de Campos, pelo Teatro de Zé Celso que ia muito além da militância mensageira do CPC, por Oiticica nos seus parangolés que subiam a Mangueira, que por sua vez era trazida –e barrada– para sambar no MAM, influenciando até Glauber Rocha que já nos apresentara um intelectual nacionalista-iluminista em crise em “Terra em Transe”.
A antropofagia do tropicalismo tinha para devorar um mundo em transformação onde o social, o estético e o político entravam um por dentro do outro deixando explícito que separá-los em campos distintos fora já uma operação de poder que esvaziava a compreensão de cada um deles. No lugar de uma resistência reativa nacionalista, onde a “identidade nacional” era essencializada como um “passado autêntico a preservar”, o tropicalismo antropofágico se abria às guitarras que chegavam, aos novos sons, aos modos de vida, à industrialização do Brasil e do mundo, aos novos movimentos políticos que explodiam em todo lugar, numa ebulição que às vezes assustava a esquerda tradicional. Para os tropicalistas o Brasil deveria então ter uma posição ativa nesta transformação, posição que, tal como a própria antropofagia, de certa forma já estava lá num jeito pop de Jackson do Pandeiro falando do bip bop no samba, na modernidade urbana do mesmo samba, no baião tão afeito às guitarra como Gil nos mostrou, e assim por diante.
Mas o sentido de antropofagia sempre expressou um conceito estético especialmente sócio-político, e um conceito sócio-político especialmente estético. Afinal a antropofagia nos uniria “socialmente, economicamente e filosoficamente”, como escreveu Oswald. O próprio Caetano não deixa de localizar, no seu “Verdade Tropical”, o tropicalismo num contexto um tanto quanto político, em meio a todo o crescimento e radicalização do movimento de oposição à ditadura de 1968 onde os tropicalistas, ao mesmo tempo que marchavam contra o regime pelas ruas do Rio junto com os artistas ligados ao “nacional popular”, propunham uma alternativa mais ousada para todo aquele contexto.  Num certo sentido o tropicalismo tentava ser uma forma de pensar a sociedade, as relações sociais, a vida de uma maneira que a estética perpassasse de forma decisiva tudo isso.
Mas de fato, como vira Oswald, a antropofagia continuava a ser, antes de qualquer formulação intelectual, uma prática social. Se a proposta dos tropicalistas às vezes parecia um pouco difícil de compreender, posto que vanguardista demais, a inventividade social da imensa multidão de pobres brasileiros efetivamente não se encaixava no “nacional popular”: desejava e realizava muito mais. Isto é, anos 70 a dentro, nenhuma suposta “autenticidade” impediria as pessoas de recusar o que lhes parecia atraente no pop, no industrial, reprocessando estas influências, por exemplo, no samba-pop de Jorge Bem e Simonal, ou no movimento black que atravessou a periferia do Rio ajudando a politizar os jovens negros na denúncia da falácia da “democracia racial” brasileira. Mas, insistimos, tudo isso numa inventividade social que transcendia o que é normalmente apenas designado como “campo da cultura” , quer dizer, a antropofagia se expressava e se expressa numa certa maneira que parte da produção social brasileira tem de escapar a uma estrutura sócio econômica desigual e violenta pré-estabelecida.
E aqui esta inventividade começa a gerar no stabelishment um medo e um conservadorismo atávico que parece, nos últimos anos, ter contaminado o próprio Caetano Veloso. De fato, já mostramos que Oswald não estava falando apenas de uma “questão cultural”. As canções de Caetano, quase sempre com a marca da antropofagia, continuam de uma originalidade impressionantes, com notável de repercussão intelectual. Mas a tentativa de reflexão intelectual a qual ele se dedica nos últimos anos, para além de suas canções, não tem mais nenhuma relação com a ousadia que marcava suas palavras, provocações e performances públicas do passado. Não se trata aqui de alguma nostalgia, ou de uma crítica a alguém porque “envelheceu”. Zé Celso Martinez, por exemplo, parece cada vez melhor, dando a sua antiga coragem criativa e rebelde uma consistência, um aprofundamento e uma capacidade de realização impressionante nos últimos anos.
É verdade que Caetano, exatamente porque se mantém criativo musicalmente, não está no time dos intelectuais morto-vivos que passaram a manter uma esquisita relação com as grandes corporações de comunicação no Brasil. Estes são, em geral, ex-artistas e/ou intelectuais, que há pelo menos 20 anos não criam nada de relevante, mantidos como uma espécie de “autoridades intelectuais-celebridade” legitimados por estas corporações cujas posições políticas eles mesmos vivem para legitimar. Estas corporações se transformaram então numa espécie de agências de michetagem intelectual (com perdão dos michês), e até criaram um instituto para proteger com verbas e “prestígio” estes que se mantém sempre numa espécie de plantão conservador: sempre prontos para atacar e desqualificar na mídia, sem direito a defesa, quem pensa diferente deles.    
Mas, com colunas semanais medíocres, imediatamente alinhadas a linha editorial do Globo e a um senso comum conservador de almoço de domingo da elite “classe-média” assustada de Zona Sul, Caetano Veloso tem beirado o patético. É claro, ele poderia argumentar que sempre foi crítico em relação às esquerdas, mas na verdade o que ele criticava era o conservadorismo e a caretice recorrente destas esquerdas . O meio social e político do qual ele hoje faz parte e adula também não gostava nem um pouco de suas opiniões e atitudes, e ele sabia provocá-los e desconstruí-los muito bem. Mas, tanto em relação à reforma dos direitos autorais e outras iniciativas do ministério Gil, quanto, antes, quando se posicionou contra as políticas de cotas, o que mais tem chamado a atenção em Caetano Veloso é a negação absoluta de toda a potência político-estética da idéia de antropofagia. Estamos diante de um Caetano anti antropofágico, pré modernista, quase anti tropicalista.
Caetano, que no seu “Verdade Tropical” comenta, por exemplo, o racismo das empresas aéreas brasileiras e diz, perspicaz, que a hipocrisia do Brasil era não admitir este racismo enquanto a dos Estados Unidos era não admitir a mestiçagem; Caetano, que ironizou os jornalistas paulistas que sempre o criticavam como os “branquinhos da Folha de São Paulo”, assinou mais ou menos recentemente um manifesto contra as políticas de ação afirmativa que se espalham pelas universidades brasileiras. Atacando-as sistematicamente, o baiano acuso-as de serem uma “americanização” do Brasil e uma ameaça a mestiçagem como parte de uma “utopia nacional”. E assim chegamos, finalmente, à passeata contra as guitarras. 
De fato, esta aconteceu lá pelos idos de 1968/69, já como uma caricatura moribunda do nacional-popular, quando artistas e intelectuais de classe média resolveram se organizar pela proibição das guitarras nos festivais da canção. A marcha, que aconteceu em São Paulo, contra a “influência estrangeira”, foi descrita por Caetano como algo semelhante a uma manifestação integralista. Na organização dela estava inclusive um dos irmãos Caymmi, que hoje esbraveja no coro conservador contra qualquer tipo de democratização do conhecimento na rede. Se Gil já tinha sido desclassificado de um festival porque tocara guitarra a lá Jimmie Hendrix, Caetano, primeiro no exílio, depois em toda a sua carreira, fez magníficas experiências gravando, cantando e até compondo canções em inglês. Quase sempre, sobretudo no início, estes trabalhos sofriam críticas na lógica “anti-guitarra”: “americanização da cultura brasileira”, desrespeito à “identidade nacional” e assim por diante. O próprio Caetano conta como Geraldo Vandré, num bar em São Paulo, ao ouvir Gal Costa cantando “Baby”, teria batido na mesa e dito: “temos que defender a cultura nacional!”.
Eis que quase quarenta anos depois, e pouquíssimo tempo após de gravar um disco só de canções norte americanas, Caetano estava usando os mesmos argumentos contra não só os intelectuais, mais em especial as lideranças dos movimentos negros que defendiam, e ajudavam a conquistar, as ações afirmativas. Mais de uma vez, irônico, repetiu que estes espelhavam o sonho de alguns negros brasileiros de serem “americanos”. Antes, Caetano já havia dito que, como Joaquim Nabuco, sentia “nostalgia da escravidão”..
Mas por que será, eu pergunto, que uma política social não poderia ser também antropofagizada? Basta um passeio por uma universidade como a UERJ, onde já existe política de cotas há alguns anos, para ver que não há nenhuma contradição entre mestiçagem e ações afirmativas. Ao contrário, as cotas radicalizam a mestiçagem, a mistura, levando estas para onde elas quase não conseguiam entrar: as faculdades de engenharia e de medicina por exemplo. Não se trata de nenhuma questão de “raça”, mas de reconhecer que característica física é sim uma forma de distinção social no Brasil, e que esta opera politicamente numa espécie de partilha estética do espaço comum que constrói os enunciados do racismo na medida que aos negros só são reservados alguns lugares na proporção que lhes são negados outros. A política de cotas ajuda a mudar a paisagem social do Brasil, e já vai sendo antropofagizada na maneira como o Brasil vai se transformando a partir dela e ela se realiza aqui de maneira distinta do que nos Estados Unidos. Mesmo assim, lá o que ela fez foi a construção de um país mais mestiço no resultado, a partir um empoderamento dos negros que permitiu que um deles conseguisse respeito social suficiente para ser eleito presidente com votos de não negros. A mestiçagem e sua força está, em primeiro lugar, nas mil e uma modulações do Brasil. Fazer dela uma “identidade nacional” que “unifica o povo” é esvaziar estas diferenças numa espécie “homogeneização parda”, operação de poder que se deu mais ou menos à época do Estado Novo e nas interpretações conservadoras feitas da obra Gilberto Freire. A mestiçagem tem a ver com a antropofagia que existe entre nós, o diferente, o outro, o estrangeiro que mora ao lado, e passa a ser parte de nós mesmos num encontro produtivo que pode ir até as vias de fato do sexo e da produção de uma nova vida.
Mas antes,  parece ser uma mestiçagem, virtual e real, em ação no mundo, que gera esta espécie de reação conservadora que Caetano tem expressado em seus artigos. A economia das redes, das relações pós nacionais, dos novos territórios afetivos e produtivos, parece nos mostrar uma espécie de brasilização do planeta, tanto no que pode haver de clichê quanto de potente nesta expressão. A antropofagia surge como a única paz possível neste ambiente de diferenças que aparecem como nas imagens do tropicalismo: a “geléia geral brasileira” vira a “geléia geral global”. A antropofagia é assim a paz construída a partir da potência, da singularidade, e não da renúncia e do medo.
Um movimento que no Brasil propriamente dito tem a ver com a ascensão social de milhões de pobres que vimos nos últimos anos, com a maneira como a antropofagia se radicaliza numa inventividade de remix que explode qualquer limite possível do “campo da cultura” ou da “classe artística”, e faz a criatividade atravessar a vida social de uma tal forma que várias novas possibilidades econômicas, e várias novas formas de relação entre trabalho e vida, aparecem a partir daí.
É claro, o Brasil e o mundo não passam por nenhum momento ufanista. O que se reverte contra este movimento é exatamente esta reação a qual Caetano agora se associa: um esforço das majors e das grandes corporações da industria cultural e digital para controlar a criação, para ser dona dos cérebros e dos desejos, para limitar o que se democratiza de maneira “perigosamente” descontrolada, correndo o “risco” de tranformar o que se acreditava ser um “dom” de alguns numa possibilidade para muitos.    
A impressão que temos é que para Caetano Veloso a antropofagia parece ficar reduzida a um mero método para compor canções, o que no resultado destas na verdade não é pouco. Mas foi Gilberto Gil, e não Caetano, que sustentou a tensão do tropicalismo e teve a coragem de encarar a máquina burocrática da Estado, o dia a dia cheio de armadilhas, impossibilidades, micro e macro poderes da política institucional, e tentar uma série de políticas culturais que potencializaram uma nova inventividade social.  Não houve nos ato do ministério Gil nenhuma política separada da estética; ao contrário, a política do Minc nos últimos anos também aponta para a mudança da paisagem, da partilha do sensível: novos atores e novos lugares. Neste sentido, Caetano mal pôde esconder um desdém politicamente mal intencionado quando disse que a chegada do Gil ao ministério da cultura não foi um momento importante do tropicalismo. Na verdade esta declaração é antes um sintoma de um Caetano Veloso que estava deixando o tropicalismo e a antropofagia. Estes, no entanto, iam adiante na ousadia intelectual e criativa do Gil, e já nem precisavam mais dele na produção criativa que se detonava por aí. É verdade que autor e autores são a expressão da singularidade e da diferença buscada muitas vezes num duro esforço que se manifesta nas mais distintas formas de expressão: se eles não puderem viver deste trabalho não poderão mais existir. Mas o problema de Caetano é que ele parece não suportar viver num ambiente criativo onde não existe bem o gênio, o que controla, a estrela, o protagonista, a celebridade, e mal consegue esconder uma mistura de medo e ressentimento em suas colunas semanais no Globo diante de um planeta-Brasil antropofágico, criativo, vagabundo, vira-lata e múltiplo, que pulsa enquanto tantos outros ainda seguem a cultuar celebridades e “identidades” no deserto. Mas nestes dias, estamos vendo, até no deserto existem rebeliões por democracia e a liberdade.

sábado, 12 de março de 2011

O Complexo do Alemão e as mudanças na relação entre capitalismo mafioso e capitalismo ''cognitivo''. Entrevista ...especial com Giuseppe Cocco

Para entender a relação entre relação entre capitalismo contemporâneo e capitalismo mafioso no Brasil, Giuseppe Cocco, na entrevista a seguir, concedida por telefone e email à IHU On-Line, falou da ocupação do Complexo do Alemão em dezembro de 2010. Nela também analisou o Pronasci e a desenvoltura do Ministério da Cultura. “Na era do Twitter, do Facebook e do Google, voltamos a um conceito restrito de cultura e, pior, a um conceito de cultura proprietária da época industrial. É estarrecedor! Temos milhões de jovens pobres que resistem nas periferias antropofagizando a cultura global, colaborando em redes e o MinC agora volta a enxergar o direito autoral sob o prisma do copyright e a cultura como virtuosismo elitista”, enfatizou.



Giuseppe Cocco possui graduação em ciências políticas pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em ciências tecnológicas e sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou com Antonio Negri o livro Global: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Ed. Record, 2005). Também é autor de Mundobraz - O Devir Do Mundo No Brasil e O Brasil No Devir Do Mundo.


Confira a entrevista.



IHU On-Line – Para o senhor, o que a ocupação do Complexo do Alemão, em dezembro de 2010, revela sobre relação entre capitalismo e máfia no Brasil?



Giuseppe Cocco – Podemos apreender a recente ocupação do Complexo do Alemão de dois pontos de vista: um primeiro, de mais curto prazo, diz respeito ao plano de desenvolvimento das políticas de segurança no Rio de Janeiro, com as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs); um segundo, de mais longo alcance, diz respeito à transformação das relações entre capitalismo mafioso e capitalismo tout court

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Do ponto de vista das UPPs, tratou-se de retrocesso. Do ponto de vista da “guerra do Rio”, trata-se de uma batalha que marca uma aceleração das mudanças nas relações entre capitalismo mafioso e capitalismo “cognitivo”. O retrocesso está no fato que a ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro não se realizou no âmbito das diretrizes do Pronasci, ou seja, da integração de “segurança” e “cidadania”. Ao passo que o Pronasci, concebido e implementado pelo então ministro Tarso Genro, articula combate à violência e reformulação da própria polícia (não por acaso, as UPPs são unidades recém formadas de jovens policiais), a ocupação do Complexo do Alemão foi feita pelas atuais forças de polícia e, pior, pelas Forças Armadas: a pacificação tornou-se uma militarização e o Ministro da Defesa ocupou o lugar que devia ser do Ministro da Justiça.





"A violência nas favelas é o fruto

de um monopólio absoluto do

uso da força pelo Estado em sua

relação neoescravagista com os pobres"



De maneira mais geral, voltam à tona os estragos incalculáveis, inclusive na retórica de esquerda, da adesão superficial à teoria política liberal, seja ela aquela do Leviatã hobbesiano ou a do “contrato” de Rousseau. Dize-se que o problema da violência nas favelas pode ser resolvido pela imposição do monopólio do uso da força por parte do Estado quando é o contrário: a violência nas favelas é o fruto de um monopólio absoluto do uso da força pelo Estado em sua relação neoescravagista com os pobres. Só que o Estado não consegue dar, a essa tremenda efetividade, uma legitimidade estável e sequer a “paz do medo” consegue impor. É nesse absurdo que toda política de segurança – até a mais bem intencionada – encalha! E isso porque a base da corrupção generalizada da polícia (quer dizer do Estado) está exatamente no direito de fato que os policiais têm de matar e torturar os pobres! O Estado sempre esteve presente nesses territórios na sua forma mais truculenta, para matar os pobres. Essa é a base fundamental de todo processo de corrupção.



Os elementos positivos do Pronasci dizem respeito à afirmação de que a política de segurança é uma política de cidadania e que é desse tipo de paz que precisamos: a paz da cidadania e não do medo. Assim, no Rio de Janeiro, o Pronasci com seu programa dos “Territórios da Paz”, possibilitou a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), quer dizer de uma nova geração e de novas unidades de policiais voltados para a comunidade.



A ocupação do Complexo do Alemão é na realidade um episódio da “guerra do Rio” pela reorganização do território. Uma reorganização do território determinada pela passagem às formas de acumulação próprias do capitalismo cognitivo. Por um lado, com o “pastiche midiático” denunciado por Luiz Eduardo Soares, construiu-se a imagem falsa de uma guerra do bem contra o mal, algo que desse vazão ao ódio da classe media para com os pobres. Pelo outro, por trás dessa falsificação, temos um processo de reorganização do controle territorial até agora exercido pelos comandos do narcotráfico. Isso é a consequência do esgotamento econômico do controle militar pelos comandos do narcotráfico da venda de varejo das drogas. Na medida em que o território das redes sociais está se tornando o espaço de organização da acumulação em geral, ele não pode mais ser deixado sob o controle militar exercido pela economia criminal do narcotráfico. Assistimos, assim, a uma reorganização das relações entre capitalismo mafioso e capitalismo em geral e isso na medida em que passamos a um regime de acumulação de tipo cognitivo.



IHU On-Line – Dentro da ideia de capitalismo cognitivo, que mudanças se revelaram nessa guerra que o Rio de Janeiro vivencia?



Giuseppe Cocco – A política de segurança atual não tem como objetivo acabar com o narcotráfico. Por isso, é uma grande hipocrisia dizer que o narcotráfico foi vencido. O fato novo é um outro: os espaços gigantescos de moradia dos pobres se tornaram grandes jazidas de acumulação para o capitalismo cognitivo, uma verdadeira nova fronteira. Na década de 1990, tivemos dois primeiros momentos de inflexão nessa direção, que já anunciavam a tendência ao esgotamento do modelo econômico e militar implementado pelos comandos do narcotráfico. O primeiro momento foi o da onda de privatizações dos serviços públicos (que amplificou o peso e o papel das concessionárias privadas de serviços públicos, em particular dos transportes coletivos).





"A política de segurança atual

não tem como objetivo acabar com o narcotráfico"



Com isso, as privatizações foram se sobrepondo à gestão privada do espaço público que, no Brasil, sempre se manteve extremamente forte, muito mais do que nas economias centrais, mesmo nas economias liberais. Um segundo momento (que na realidade não é sequencial mas contemporâneo ao primeiro) é aquele da emergência das milícias. Setores da polícia e forças de segurança passaram a usar o poder que tradicionalmente lhe era (e continua sendo) entregue de vida e morte sobre os pobres para controlar diretamente as dimensões produtivas do território dessas populações. Então, as milícias expulsam os comandos do narcotráfico (pelo menos como organização hierarquizada e estruturada) e, às vezes, expulsam o tráfico de drogas. Elas tomam o controle da região e passam a controlar todos os tipos de serviços, a começar pelos “impostos”.



As milícias cobram “impostos“ em troca da paz que elas mesmas ameaçam. Esse é um mecanismo tipicamente mafioso de vender a proteção. E, em seguida, elas exploraram o transporte coletivo, as vendas de botijões de gás, a pirataria de CDs e DVDs, os gatos de eletricidade e o furto do sinal da televisão e internet a cabo (o "gatonet" ou "gatovelox"). Portanto, as milícias se tornaram, junto com a privatização dos serviços públicos, o outro lado da mesma corrida em direção ao capitalismo cognitivo. O capitalismo cognitivo não é apenas o Google e a internet. O capitalismo cognitivo é essa dimensão de uma produção que se torna serviço e que encontra na metrópole o espaço produtivo de uma circulação produtiva. Então, a do Alemão não foi nem uma batalha “final” nem uma luta do “bem contra o mal”, mas um episódio importante na reorganização das relações entre capitalismo mafioso (direta e explicitamente ligado à acumulação primitiva) e capitalismo cognitivo.



Uma reorganização acelerada pelo fato que as políticas sociais do governo Lula tornaram esses territórios dos pobres, tradicionalmente entregues à exclusão e ao narcotráfico, na nova fronteira de expansão do capitalismo rumo à conquista daquelas camadas sociais que os marqueteiros definiram como “classe C”. Os pobres passaram a ter poder de compra e as favelas se tornaram territórios de consumo e, por consequência, atrativas para a acumulação.



Outro fator de aceleração é a agenda de Megaeventos do Rio de Janeiro. A cidade sediará, em 2011, as Olimpíadas Militares, em 2012 a cúpula do Rio+20, em 2014 a parte carioca da Copa do Mundo de Futebol e, enfim, os jogos Olímpicos de 2016. Tudo isso reconfigura o espaço metropolitano carioca e acelera a corrida para uma acumulação primitiva que passa pelo controle dos territórios, ou seja, dos fluxos que desenham as linhas de acumulação cognitiva: serviços, atividades de produção do intangível, trabalho imaterial, redes de telefonia e internet, transportes, moda, marketing, design, cultura etc.



Então, aquela do Alemão é fundamentalmente uma batalha dentro de uma reconfiguração social e produtiva da chamada “classe C”. E o verdadeiro desafio é de saber se continuaremos a ficar presos do discurso sociológico da classe C (da “nova classe média”) e vamos assim apoiar, de maneira cega e consensual, o regime discursivo da guerra do bem contra o mal (ou seja, da guerra contra os pobres), ou conseguiremos desenvolver novos conceitos e novas análises da composição da classe de um novo tipo de trabalho, um trabalho que investe, como já dissemos, a vida como um todo, na circulação produtiva dos territórios metropolitanos. Só uma análise de classe do trabalho permite uma crítica desses embates, ou seja, a construção de um ponto de vista adequado.



IHU On-Line – Como mudaram as relações entre capitalismo mafioso e capitalismo?



Giuseppe Cocco – No capitalismo industrial, o capitalismo mafioso se torna marginal e relegado à esfera do consumo. Isso porque a própria dinâmica do “desenvolvimento” industrial torna “primitiva” a acumulação mafiosa, algo que aconteceu no tempo, que até mesmo já esquecemos e aparece nas formas da propriedade privada, algo que depende do acaso (da herança) e da acumulação (industrial). Ricos e pobres aparecem não mais como resultado do roubo e da lei da força, mas como condições sociais determinadas por processos sociais assentados na força da Lei.





"No capitalismo industrial,

o capitalismo mafioso se torna marginal

e relegado à esfera do consumo"



A apropriação direta e violenta dos bens, da terra, dos meios de produção e do trabalho dos outros (a escravidão e a servidão) é substituída pela dinâmica da inovação tecnológica. A acumulação mafiosa se torna marginal e podemos até dizer que a diferença entre desenvolvimento e subdesenvolvimento pode ser pensada em termos da presença explícita (ou não) de formas de acumulação primitiva: um país será tanto mais subdesenvolvido quanto a acumulação primitiva, ou seja mafiosa, é explicitamente atuante em sua dinâmica econômica e social. Nesse marco, o capitalismo mafioso se limita a esfera do consumo e aparece como uma das formas de rentismo parasitário, na disputa do que já foi produzido e valorizado. Não por acaso ele é duramente ironizado pelo Keynes.



O capitalismo cognitivo, diferentemente do capitalismo industrial, vive da apropriação direta do que é produzido em comum nas redes sociais (nas metrópoles onde se geram as significações – cultura – e se espalham os estilhaços do trabalho imaterial). A relação entre valorização e acumulação é invertida: a valorização acontece nas relações sociais (na cooperação social) e a acumulação vem depois, como uma apropriação parasitária que renova e atualiza, continuamente, a acumulação primitiva: é isso que exalta a necessidade das privatizações e todos os conflitos sobre as patentes e o copyright.



Ora, sabemos que no Brasil a relação entre o capitalismo mafioso (acumulação primitiva) e capitalismo industrial nunca foi resolvida, no sentido que a própria acumulação capitalista sempre aparece sendo como acumulação mafiosa em uma relação direta com a economia criminal. Aqui a corrida para o capitalismo cognitivo explicita suas novas relações com o capitalismo mafioso, pois ela aparece indiferentemente nas formas das milícias ou das privatizações, “privataria” e “pirataria” vão juntinhas. Exatamente porque o Brasil nunca conseguiu tornar primitiva a acumulação de tipo ilegal, a nova mafiosidade do capitalismo cognitivo aparece de maneira mais nítida.



IHU On-Line – A partir dessa perspectiva da relação entre violência e capitalismo, quais são as novas batalhas da guerra no Rio de Janeiro?



Giuseppe Cocco – As batalhas que estamos assistindo são aquelas da desmilitarização do narcotráfico, pois seu funcionamento econômico se tornou obsoleto e por isso insuportável! As novas batalhas são as batalhas da “classe C”. Elas têm como teatro a emergência dos pobres como sujeito econômico e/ou político e a questão da “paz” está atrelada às alternativas que atravessam esse processo. Por um lado, capitalismo mafioso e capitalismo cognitivo visam homologar a nova classe média (“C”) como fronteira constituída por uma enorme jazida de novos consumidores, sem reconhecimento de suas dimensões produtivas.



Aqui, a disputa entre as duas formas de acumulação apenas aponta para o fato que o capitalismo cognitivo é necessariamente mafioso: seja quando ele aparece na forma da milícia e de seu monopólio (estatal, porém ilegal) do uso da força; seja quando aparece na forma das decisões de uma agência reguladora sobre compartilhamento de sinal wireless de internet, ou seja, de uma política estatal (legal, porém ilegítima) de produção da escassez (escassez de sinal nesse exemplo) como base para que o capitalismo renove e mantenha uma acumulação que é, ao mesmo tempo, mafiosa e cognitiva (e não tem mais legitimidade técnica).





"O copyright se reafirma contra o compartilhamento

e para subordinar os pobres

e não se preocupa com os filhos da elite"



É a mesma coisa que acontece com o fechamento, por uma delegada da polícia civil, da Xerox [empresa fotocopiadora] da faculdade de Serviços Social da UFRJ (no final de 2010): a aplicação truculenta do copyright visa às alunas pobres e do subúrbio e seu direito ao saber, e não aos jovens da PUC. O copyright se reafirma contra o compartilhamento e para subordinar os pobres e não se preocupa com os filhos da elite. A mesma delegada, não por acaso, aparecia na TV comentando as operações do Alemão.



É a mesma guerra, com batalhas diferentes. O que está em jogo é essa apropriação capitalista dos pobres como consumidores a serem explorados diante da possibilidade que eles se constituam como sujeitos capazes de afirmar politicamente sua riqueza. Nos 8 anos de governo Lula, o MinC de Gilberto Gil, Juca Ferreira e Célio Turino tinha começado a trabalhar nesse segundo sentido, de maneira muito forte e expressiva, com grande potencial para a reformulação das políticas públicas como um todo. É triste constatar que o Setor Cultural do PT (e setores do governo da Dilma) não entenderam literalmente nada e, desestruturando esse trabalho, entregaram de volta o MinC à Industria Cultural (aquela que precisa da mamata estatal para ser “criativa”) e aos interesses corporativos dos “artistas” assustados diante da mutação que o novo contexto tecnológico e do trabalho anuncia e proporciona: a estética não é mais definida pela transcendência dos poucos (curadores, marchands, medalhões da “arte” espetáculo), mas pela imanência da multidão que produz e cria em rede, de maneira colaborativa.



As periferias querem o reconhecimento de sua estética e criação – como podemos ler no belo livro de Marcus Faustini – e não o acesso à suposta criação culta dos artistas do Leblon. Essas redes de criação e trabalho são metropolitanas, sociais e técnicas ao mesmo tempo. Elas desenham os territórios de uma circulação que mistura produção e reprodução, tempo livre e tempo de trabalho. De repente, a questão da guerra e da “paz” aparece de maneira nova. Hoje em dia é preciso um espaço metropolitano de paz para que a cooperação produtiva aconteça dentro do território. Antes, esse território de paz acontecia dentro dos muros da fábrica, dos escritórios, das empresas e de seu copyright. Hoje, as empresas, para funcionar, precisam da metrópole e de seus serviços terceirizados.





"Hoje em dia é preciso

um espaço metropolitano de paz

para que a cooperação produtiva

aconteça dentro do território"



Do ponto de vista dos pobres, ou seja, da composição de classe do trabalho metropolitano, precisamos articular uma outra perspectiva, aquela que afirma (e constitui) a paz como condição e resultado da cooperação social. Mas essa paz não é aquela do medo, mas a paz dos cidadãos. Isso só pode acontecer pelo envolvimento dos pobres nos territórios onde eles vivem e trabalham, transformando politicamente essa fusão de vida e trabalho que caracteriza as novas formas de acumulação capitalista. Vida e o trabalho se unem diretamente e, portanto, precisam formar suas próprias milícias. As UPPs, inspiradas na Polícia Comunitária, fizeram um passo nessa direção. Mas precisamos avançar muito mais. Vejam bem, estou na realidade falando da reforma da polícia, para que ela seja uma milícia cidadã: ela não pode ser “técnica”. Somente a participação dos cidadãos também nas questões de segurança, por exemplo, passando a eleger, em eleições democráticas, os delegados e os comandantes das polícias irá nesse sentido.



O que o Rio de Janeiro precisa não é eliminar o conflito, mas organizá-lo para que os moradores se organizem, participem, manifestem as suas reivindicações sobre questões essenciais como a moradia, o ensino, a distribuição de renda, o transporte... Só o movimento social, só o conflito organizado dentro de um espaço democrático, só a emergência desses movimentos é que irão permitir a transformação da cidade. Então, o verdadeiro desafio das próximas batalhas é que a guerra não continue a ser o horizonte da destruição do espaço público e a paz do comum encontre sujeitos capazes de constituí-la. Por um lado, a “classe C”, pelo outro, a nova composição de classe do trabalho metropolitano.





"Os únicos territórios da paz que funcionarão

serão aqueles que saberão construir

instituições do comum"



De toda maneira, os únicos territórios da paz que funcionarão serão aqueles que saberão construir instituições do comum. As diferentes instâncias de governo ainda têm uma visão extremamente tradicional e inadequada. Como dissemos, no MinC do governo Dilma, a cultura volta a ser vista como enfeite (proporcionado por “artistas” virtuosos) ou como indústria cultural (uma múmia “nacional” revitalizada pela importação do chavão britânico de “indústria criativa”). Na era do Twitter, do Facebook e do Google, voltamos a um conceito restrito de cultura e, pior, a um conceito de cultura proprietária da época industrial. É estarrecedor! Temos milhões de jovens pobres que resistem nas periferias antropofagizando a cultura global (o funk, o tecnobrega, o rap cantado em guarani), colaborando em redes e o MinC agora volta a enxergar o direito autoral sob o prisma do copyright e a cultura como virtuosismo elitista. Assim, reduz-se a criação à indústria (criativa) e a criação (social) à pirataria. Para os jovens das periferias e das favelas, só é oferecido o horizonte do emprego e do trabalho subordinado e, no máximo, um “vale cultura” para assistir à medíocre produção “nacional” cujas bases tecnológicas e clichês são importados.



IHU On-Line – Por que o senhor se refere ao narcotráfico no Brasil a partir do fordismo?



Giuseppe Cocco – Falar da dimensão fordista do narcotráfico no Rio de Janeiro significa se referir ao papel por ele desempenhado diante da ausência de pleno emprego industrial e, pois, da falta de uma relação salarial capaz de concentrar em suas instituições o conflito social entre capital e trabalho e sua mediação. O narcotráfico acabou ocupando o espaço social da exclusão. Nesse sentido o narcotráfico é uma figura do fordismo em uma sociedade não fordista, tendo se tornado, para os pobres das favelas, no mecanismo de produção de elementos paradoxais de proteção social. O narcotráfico é fordista sem fordismo: pois é nos espaços por ele controlado que se multiplicaram formas fracas e mínimas de welfare urbano: gatos, autoconstrução do espaço urbano e até algumas formas de previdência.



Atualmente, os serviços não são mais elementos de reprodução das forças de trabalho, eles são as próprias redes de produção e acumulação capitalistas. As cidades das Olimpíadas precisam fazer uma gestão direita e integrada dos serviços e é aí que o capital encontra o fluxo de acumulação de valor. Por isso que há uma transformação. A primeira transformação é o fato de que a polícia passou a fazer a gestão do território, na forma das milícias, a partir da gestão dos serviços. Todo mundo, com isso, passou a ser incluído, mas incluído pelas condições impostas pela milícia. Agora, o próprio Estado assume o papel de desbravador do capitalismo cognitivo. Não por acaso, antes das Forças Armadas, foi o Banco Santander que abriu uma agência bancária no Alemão e a propaganda dessa iniciativa teve como sua figura central Junior, do AfroReggae. No mesmo sentido, a Nextel mobiliza em suas propagandas de rádio-telefones MV-Bill da CUFA. No dia depois da “ocupação”, o Rio de Janeiro recebia o “grau de investimento” e as operadores de telefonia e internet entravam para “regularizar” os contratos (uma vez eliminados os gatos).



IHU On-Line – Então, o capitalismo cognitivo implica também um capitalismo mafioso?



Giuseppe Cocco – No capitalismo industrial a dimensão mafiosa do capital era jogada para o passado, onde houve uma acumulação ... primitiva. Hoje, o capitalismo cognitivo renova diariamente suas dimensões mafiosas. Por isso ele pode apresentar-se nas formas de uma empresa privada de concessionária de serviços públicos ou das milícias. No Rio de Janeiro isso aparece de maneira ainda mais nítida na medida em que aqui o capitalismo nunca chegou a fazer esquecer a sua face primitiva. Mas os mecanismos são novos. Vejam o filme “A Rede Social”, sobre o criador do Facebook. O roteiro do filme é de uma banalidade espantosa.



A succes story é uma série de episódios de brigas judiciais sobre quem é o proprietário da “ideia Facebook”. E a solução judiciária é impossível na medida em que a “ideia” é fruto da socialização, do trabalho colaborativo em rede. É impossível dizer de quem é uma ideia e ainda menos de quem é a riqueza de informações, imagens, afetos dos quais o Facebook ou as redes de telefonia celular são o teatro. Mas isso não impede a um tribunal, ou a uma “agência reguladora” de decidir. Só que esta decisão, de estabelecimento de um direito autoral ou de penalização do compartilhamento de uma frequência de acesso wireless à internet, é duplamente arbitrária: porque o capitalismo cognitivo explora nossas próprias relações sociais, porque dessa maneira cria-se uma escassez artificial diante das dimensões expansivas e desmedidas da riqueza produzida em rede.



Estamos exatamente em uma sociedade de trabalho em rede, de trabalho colaborativo que vem do comum e produz outro comum, em espiral! Por isso, volto a enfatizar a relação entre a guerra do Rio e a virada neoconservadora do Ministério da Cultura. O governo não apreendeu a importância que tem: 1) a dimensão ampliada da cultura; 2) a dimensão urbana da cultura metropolitana; e 3) a necessidade de vermos a economia do ponto de vista da cultura e não a cultura do ponto de vista da economia. As políticas públicas da paz têm que ser políticas da vida, biopolíticas: reconhecimento das dimensões produtivas da vida. Não se trata de erradicar a pobreza, mas reconhecer a riqueza dos pobres. As políticas do MinC na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira foram tão importantes quanto as do Bolsa Família.



IHU On-Line – Os conceitos de Império e Multidão se aplicam a essa guerra no Rio de Janeiro?



Giuseppe Cocco – O conceito de Império funciona perfeitamente. A definição básica de Império é “um não lugar sem fora. Ou seja, no Império, você pode encontrar elementos de periferias e de centro em qualquer lugar. E o que encontramos exatamente no Rio de Janeiro são os elementos de periferia e de centro que se misturam e parecem não ter fronteiras. Sem fronteiras, as operações de polícias parecem com operações de guerra, e as operações do Exército (no Rio bem como no Haiti) se parecem as de polícia. Não dá mais para se saber onde acaba a polícia e onde começa o Exército, onde começa o “dentro” e o “fora”.



O conceito de multidão também tem tudo a ver, pois o desafio de uma política dos pobres implica exatamente numa recomposição de classe que não passa mais pelos processos de homogeneização produzidos pela relação salarial. A recomposição de classe hoje depende da capacidade que teremos de combater a ideologia capitalista e consumista da “classe C” para afirmarmos as lutas dos pobres enquanto uma multidão de singularidades que cooperam entre si se mantendo tais!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Manifesto dos Brancos da UFRGS pelas cotas raciais

ESSE SAMBA VAI PARA CELSO ATHAIDE, ALBA ZALUAR E CAETANO VELOSO!
Este texto é um manifesto escrito e subscrito por brancos que compõem a
comunidade escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é uma
retumbante admissão pública, por nossa parte, de que vivemos em um contexto de
exclusão estrutural de negros e indígenas dos benefícios e espaços de cidadania
produzidos por nossa sociedade e onde, ao mesmo tempo, é produzida uma teia de
privilégios a nós brancos, que torna completamente desigual e desumana nossa
convivência. Somos opressores, exploradores e privilegiados mesmo quando não
queremos ser. O racismo não é um “problema dos negros”, mas também dos brancos.
É pelo reconhecimento destes privilégios que marcam toda nossa existência, mesmo
que nós brancos não os enxerguemos cotidianamente, que exigimos a imediata
aprovação de Ações afirmativas de Reparação às populações negras e indígenas na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No Brasil vivemos em um estado de
racismo estrutural. Já é comprovado que raça é um conceito biologicamente
inadmissível, só existe raça humana e pronto. Mas socialmente, nos vemos e
construímos nossa realidade diária em cima de concepções raciais. Portanto, raça
é uma realidade sociológica. Não é uma questão de que eu ou você sejamos
pessoalmente preconceituosos. Mas é só olhar para qualquer pesquisa que veremos
como existe um processo de atração e exclusão de pessoas para estes ou aqueles
espaços sociais, dependendo de sua cor. Não é à toa que não temos quase médicos
negros, embora eles sejam a maioria nas filas dos postos de saúde; que quase não
vemos jornalistas negros, mas estes são expostos diariamente em páginas
policiais; que não temos quase professores negros, especialmente em posições com
melhores salários, e vemos alunos negros apenas em escolas públicas enquanto,
na universidade pública quase só encontramos brancos. A situação dos indígenas
não é diferente, quando eles ainda sofrem lutando pelo direito mínimo de ter
suas terras e aldeias, mesmo isso lhes é surrupiado pelos brancos. Vamos parar
com esta falácia de dizer que não aceitamos cotas raciais na universidade,
porque não queremos ser racistas: se vivemos no Brasil, se fomos criados nesta
cultura, se construímos nossas vidas dentro deste conjunto de relações onde a
raça é um elemento determinante, somos todos racistas! Não fujamos da realidade.
Não usemos a falsa desculpa de que não queremos criar divisões entre raças no
Brasil. Nossa sociedade poderia ser mais dividida racialmente do que já é hoje?
O estudo de Marcelo Paixão intitulado “Racismo, pobreza e violência”, compara o
IDH dos brancos e dos negros dentro do Brasil. O IDH tenta medir a qualidade de
vida das populações, combinando os três fatores que, por abranger, cada qual,
uma imensa variedade de outros, seriam os essenciais para a medição: renda por
habitante, escolaridade e expectativa de vida. Na última versão do IDH, de 2002,
o Brasil ocupa o 73º lugar entre 173 países avaliados, mesmo possuindo todas as
riquezas nacionais e sendo o 11º país mais desenvolvido economicamente no mundo.
Porém, entre 1992 e 2001, enquanto em geral o número de pobres ficou 5 milhões
menor, o dos pretos e pardos ficou 500 mil maior. [Consideram-se brancos 53,7%
dos brasileiros; pretos ou pardos, 44,7%, que chamaremos, hora em diante de
negros]. O estudo mostra que Brasil dos brancos seria, na média o 44º do mundo
em matéria de desenvolvimento humano, ao passo que o Brasil dos negros estaria
no 104º lugar!!! Nada disso é novidade, porém, para quem aceita viver com os
olhos minimamente abertos. Temos que reconhecer que vivemos num sistema
estruturalmente racista, que se reproduz em cima de mecanismos constantes de
exclusão e exploração dos negros e de privilégios naturalizados aos brancos. Em
um sistema racista, pessoas brancas se beneficiam do racismo, mesmo que não
tenham intenções de serem racistas. Nós brancos não precisamos enxergar o
racismo estrutural porque não sofremos diariamente diversos processos de
exclusão e tratamento negativamente diferencial por causa de nossa raça. Nossa
raça (e seus privilégios) são tornados invisíveis dia-a-dia. Este sistema de
privilégios invisíveis a nós brancos é que nos põe em vantagens a todo instante,
por toda nossa vida, em todas as situações, e que destroça qualquer tentativa de
pensarmos que estamos onde estamos apenas por méritos pessoais. Que mérito puro
pode ter qualquer branco de estar no lugar confortável em que se encontra hoje,
mesmo que tenha saído da pobreza, dentro de um sistema que lhe privilegiou
apenas por ser branco, ao mesmo tempo em que prejudicou outros tantos apenas
por serem negros? Vamos apresentar uma breve listinha de circunstâncias em
nossas vidas que expõem nossos privilégios de brancos e que, embora não
percebêssemos, embora os víssemos apenas como relações naturais para nós, por
sermos pessoas normais e “de bem”, foram decisivas para nos trazer onde estamos
(e por não serem vivenciados também por negros e indígenas, seu resultado é
fazer com e seja tão desproporcional o número destas populações dentro da UFRGS,
por exemplo): 1) Sempre pude estar seguro de que a cor da minha pele não faria
as pessoas me tratarem diferentemente na escola, no ônibus, nas lojas, etc; 2)
Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca os prejudicou em termos
das busca ou da manutenção de um emprego; 3) Estou seguro de que a cor da pele
dos meus pais nunca fez com que seu salário fosse mais baixo que o de outra
pessoa cumprindo sua mesma função; 4) Posso ligar a televisão e ver pessoas de
minha raça em grande número e muitas em posições sociais confortáveis e que me
dão perspectivas para o futuro; 5) Na escola, aprendi diversas coisas
inventadas, descobertas, grandes heróis e grandes obras feitas por pessoas da
minha raça; 6) A maior parte do tempo, na escola, estudei sobre a história dos
meus antepassados e, por saber de onde eu vim, tenho mais segurança de quem sou
e pra onde posso ir; 7) Nunca precisei ouvir que no meu estado não existiam
pessoas da minha raça; 8) Nunca tive medo de ser abordado por um policial
motivado especialmente pela cor da minha pele; 9) Já fiz coisas erradas e mesmo
ilegais por necessidade, e nunca tive medo que minha raça fosse um elemento que
reforçasse minha possível condenação; 10) Posso ir numa livraria e perder a
conta de quantos escritores de minha raça posso encontrar, retratando minha
realidade, assim como em qualquer loja e encontrar diversos produtos que
respeitam minha cultura; 11) Nunca sofri com brincadeiras ofensivas por causa
de minha raça; 12) Meus pais nunca precisaram me atender para aliviar meu
sofrimento por este tipo de “brincadeira”; 13) Sempre tive professores da minha
raça; 14) Nunca me senti minoria em termos da minha raça, em nenhuma situação;
15) Todas as pessoas bem sucedidas que eu conheci até hoje eram da mesma raça
que eu; 16) Posso falar com a boca cheia e ficar tranqüilo de que ninguém
relacionará isso com minha raça; 17) Posso fazer o que eu quiser, errar o quanto
quiser, falar o que eu quiser, sem que ninguém ligue isso a minha raça; 18)
Nunca, em alguma conversa em grupo, fui forçado a falar em nome de minha raça,
carregando nas costas o peso de representar 45% da população brasileira; 19)
Sempre pude abrir revistas e jornais, desde minha infância, e estar seguro de
ver muitas pessoas parecidas comigo; 20) Sempre estive seguro de que a cor da
minha pele não seria um elemento prejudicial a mim em nenhuma entrevista para
emprego ou estágio; 21) Se eu declarar que “o que está em jogo é uma questão
racial” não serei acusado de estar tentando defender meu interesse pessoal; 22)
Se eu precisar de algum tratamento medico tenho convicção de que a cor da minha
pele não fará com que meu tratamento sofra dificuldades; 23) Posso fazer minhas
atividades seguro de que não experienciarei sentimentos de rejeição a minha
raça. Esta realidade destroça meu mito pessoal de meritocracia. Minha vida não
foi o que eu sozinho fiz dela. Muitas portas me foram abertas baseadas na minha
raça, assim como fechadas a outras pessoas. A opção de falar ou não em
privilégios dos brancos já é um privilegio de brancos. Se o racismo, e os
privilégios dos brancos são estruturais, as ações contra o racismo devem ser
também estruturais. Racismo não é preconceito: racismo é preconceito mais poder.
Se não forçarmos mudanças nas relações e posições de poder em nossa sociedade,
estaremos reproduzindo o racismo que recebemos. E agora chegou a hora de a
universidade dizer publicamente: vai ou não vai “cortar na própria pele” o
racismo que até hoje ajudou a reproduzir, estabelecendo imediatamente Cotas no
seu próximo vestibular? Se mantivermos o vestibular “cego às desigualdades
raciais” estaremos, na verdade, mantendo nossos olhos fechados para as
desigualdades raciais que nós mesmos ajudamos a reproduzir sociedade afora. Nós,
brancos da universidade que assinamos esta carta já nos posicionamos: exigimos
cortar em nossa própria pele os privilégios que até hoje nos sustentaram. Cotas
na UFRGS já!
02.10.2010 | by martalanca| cotas raciais, democracia racial | 0 comments

sábado, 5 de março de 2011

vamos assinar! transparência já!

vamos assinar! transparência já!



A reforma da Lei dos Direitos Autorais (LDA) foi discutida em diversos foruns promovidos pelo MinC em parceria com diferentes instâncias da sociedade civil nos últimos anos. A nova gestão do MinC parece orientada a destruir esse trabalho e a nortear sua política em função dos interesses do Escritório Central de Direitos Autorais (ECAD) e de artistas poderosos. Ao mesmo tempo, o ECAD é uma instituição de direito privada, sem fiscalização pública. A nova diretora de direitos autorais do MinC chegou a declarar que fiscalização do Estado seria intervenção do Estado sobre direitos autorais. O Deputado Federal Alessandro Molon (PT) propôs uma Audiência Pública à Comissão Educação e Cultura da Câmara. O papel do Ecad e dos Direitos Autorais precisam ser discutidos democraticamente e de maneira transparente. Nós abaixo assinados apoiamos enfaticamente a iniciativa do Deputado Molon e pedimos que essa Audiência Pública seja realizada o mais rápido possível.



Giuseppe Cocco - Professor Titular do Programa de Pós-graduação da ECO-UFRJ



Peter Pál Pelbart - Professor Titular do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP



Eduardo Viveiros de Castro - Professor Associado - Museu de Antropologia da UFRJ



Geo Britto – Centro de Teatro do Oprimido - Rio de Janeiro



Adriano Pilatti, Prof. do Depto. de Direito da PUC-Rio



Tatiana Roque - Professora do Instituto de Matemática da UFRJ



Barbara Szaniecki – Pesquisadora Escola Superior de Design Industrial – UERJ



Fábio Malini – Professo Adjunto – Escola de Comunicação UFES



Alexandre Mendes – Defensor Público – Rio de Janeiro



Pablo Ortellado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo



Ivana Bentes – Diretora da Escola de Comunicação da UFRJ



Guilherme Carboni - Professor da Faculdade de Comunicação da FAAP



Wallace Hermann Jr- Radialista



Pedro B. Mendes - doutorando do IBICT e pesquisador



Alexandre Negreiros - Diretor do Sindicato dos Músicos do Estado do RJ



Bruno Cava - Escritor e Mestrando em Filosofia do Direito - UERJ



João Carlos Caribé - Publicitário e Fundador do Movimento Mega Não - RJ



André Barros - advogado e ritmista do Império Serrano



Mariana R. Pimentel - Professora Instituto de Artes UERJ e Produção Cultural UFF



Graciela Selaimen - Instituto Nupef

De que Ana de Hollanda tem medo?

4 de março de 2011
De que Ana de Hollanda tem medo?


Na última semana, extravasou na grande imprensa a controvérsia que vem marcando os dois primeiros meses de ministério da cultura sob direção de Ana de Hollanda. Desde janeiro, intenso debate circula nas redes sociais, porém, só com o afastamento de Emir Sader pela ministra, intelectual antes cotado para assumir a Fundação Rui Barbosa, os conflitos receberam maior destaque. Agora, muitos começam a informar-se sobre o que pode ser a primeira crise mais séria do governo Dilma.

O dissenso foi provocado pela ação de militantes, comunicadores, pesquisadores, produtores, ponteiros e cidadãos, dentro e fora da internet, partidarizados ou não, que fizeram ou não a campanha de Dilma. É um movimento heterogêneo, difícil de classificar. Começou brando mas vem crescendo à medida que as avaliações iniciais sobre a nova política cultural se confirmam, diante das medidas concretas tomadas pelo ministério. Como primeira vitória, temas relacionados ao novo MinC foram resgatados dos suplementos "mercado" ou "dinheiro", da grande imprensa, onde estavam sendo abordados, de volta aos cadernos culturais ou políticos.

Pode parecer uma controvérsia menor, levando em conta o orçamento do ministério da Cultura, em relação a outras áreas do governo. Seriam alguns tostões (0,12% da despesa federal) comparados às fábulas despendidas pelos ministérios da previdência, da saúde, da defesa, da educação.

Mas seria interpretar o problema numa métrica falha: o valor de uma cultura não se afere quantitativa, mas qualitativamente. Com ainda mais razão, nas últimas décadas, com a mutação das forças produtivas. Autores chamam-na de virada para uma sociedade pós-industrial, pós-moderna, pós-fordista, da informação e conhecimento.

Como quer que seja batizado, emergiram novas formas produtivas, numa espécie de revolução pós-industrial, em que o imaterial passou a comandar a geração de valor. Isto não significou o abandono da produção industrial, mas a sua reconfiguração num novo paradigma. Da mesma forma que a mutação do trabalho no século 19 industrializou a agricultura, sem porém substitui-la, hoje ocorre um processo de pós-industrialização da produção industrial.

Com isso, a cultura, como criadora e propagadora de valores intangíveis, se torna imediatamente produtiva. Na nova economia, a cultura e o conhecimento movem e qualificam a cadeia produtiva. Por isso, a cultura não pode mais ser tratada como acessório ou departamento, como numa divisão fabril. Ela passa a atuar de modo transversal a todos os ministérios, qualificando direta e indiretamente todas as políticas públicas (como o meio-ambiente). Não há mais economia da cultura, a economia é cultura.

Por mais que defensores da atual gestão desqualifiquem o movimento que lhe contesta, --- como se não passasse de uma revide paroquial de grupos alijados, tentando recuperar aparelhos e cargos; --- na realidade, o que está em jogo são duas concepções de cultura profundamente diferentes e irreconciliáveis. Trata-se de um corte conceitual, por assim dizer, entre a cultura como mundo e o mundinho da cultura.

No governo Lula, o núcleo das políticas do MinC consistiu no complexo da Cultura Viva, sobretudo os Pontos de Cultura. Além do assistencialismo, os Pontos vem exprimindo uma nova forma de produzir e afirmar-se, uma forma autônoma. Foi a formulação mais feliz, enquanto técnica de governo, de um movimento imanente à sociedade.

Com os Pontos, o estado não está simplesmente doando a fundo perdido. Reconhece a dimensão produtiva da juventude, dos pobres, das periferias e dos rincões, das minorias negras, quilombolas, indígenas. O estado reconhece que eles têm uma força própria, uma potência de vida, que não precisam ser incluídos na economia apenas como consumidores. E então investe, fornecendo condições materiais para que cada nó da rede se autovalorize e crie, ele mesmo, os conteúdos de sua cultura, --- no ato mesmo em que os dissemina, miscigena e remixa com o restante da teia.

Longe de induzir dependência (viciar o pobre na mamata), trata-se de um investimento com custo relativamente baixo, mas que colhe imensuráveis dividendos à sociedade. Se existem passivos, e por óbvio toda política deve ser permanentemente aperfeiçoada, do outro lado desponta um imenso ativo: o empoderamento do cidadão como produtor de seu mundo, um campo produtivo liberto de subordinação e partilhado em rede. Todo o conjunto funciona num ciclo virtuoso de cultura, política e economia.

Não à toa, no governo Lula, os Pontos de Cultura contemplaram cerca de 8,4 milhões de pessoas, e o sociólogo Giuseppe Cocco, da UFRJ, considere-o essencialmente complementar ao programa Bolsa Família. Assim o cidadão não só tem acesso à renda, como também condições de produzir valores. Se o governo Dilma for esperto, colocará os Pontos no mesmo patamar do Bolsa Família: imune a cortes, prioridade de expansão, coordenado com outras políticas sociais.

Vale destacar que essas configurações produtivas não foram simples efeito das políticas do MinC. O ministério não as produziu. Elas já aconteciam. A sociedade global já se reorganiza no sentido de adaptar-se às novas liberdades das redes. A disseminação generalizada de conhecimento e cultura já é uma realidade incontornável e irreprimível, do mesmo modo que a forma de militância que lhe corresponde. Uma militância em enxame, simultaneamente política, cultural e social, como a que vem realizando a primeira Revolução 2.0, na Tunísia e no Egito.

Portanto, foram as lutas dos trabalhadores precarizados, de todos os excluídos por décadas de neoliberalismo, que abriram uma brecha para esse modo criativo de viver cultura. O MinC com Gilberto Gil e Juca Ferreira somente aceitou essas mudanças, não as tentou bloquear ou criminalizar, e se deixou ocupar e ser formulado por um movimento multitudinário e enxameante.

Daí a conquista dos Pontos de Cultura e a afirmação dos novos direitos desse mundão 2.0, cujos slogans são compartilhamento e vibração em rede. O social não está matando a cultura; devoram-se amorosamente um ao outro.

O que acontece quando Ana de Hollanda e sua equipe de formuladores (os policymakers) assumem o ministério? Uma reviravolta. Tudo o que, em alguma medida, remete às novas liberdades, aos novos modos de produzir, à pós-industrialização, tudo isso se torna obscuro e ameaçador, ou então ingênuo e populista.

Daí a esconjuração, açodada e sem consulta, do Creative Commons (CC). Logo na primeira canetada, até hoje sem qualquer explicação razoável pelos novos gestores. Eles sequer demonstram saber do que se trata, senão talvez como uma vaga associação do CC a essas "obscuras mudanças". Afinal, CC e copyleft são as principais alternativas ao sistema cerrado de propriedade imaterial, o copyright; conquanto, a bem da verdade, nada haja de revolucionário nessas licenças mais flexíveis por si mesmas.

Daí também o temor quanto à reforma da Lei dos Direitos Autorais brasileira, uma das mais draconianas do mundo, que segrega do domínio público as obras, e por até 70 anos depois da morte do autor. O projeto tem sido profunda e extensivamente discutido desde a sua formulação no governo Lula, com 80 encontros nacionais, 7 seminários e uma consulta pública que colheu mais de 8.000 sugestões. Desconheço projeto de lei tão minudenciado, inclusive em sites como htttp://www.reformadireitoautoral.org ou http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral

A quem não interessa a transformação, tão potencializada pelo governo Lula?

Primeiro, às grandes corporações que exploram a cultura. Às indústrias culturais que ainda apostam no modelo antigo e excludente. Quem mais lucra com propriedade imaterial não é o autor, mas os atravessadores: gravadoras e editoras. Indo só um pouquinho além do autor, logo ali em frente, percebe-se que a cultura não se faz só no momento da autoria. O ministério não é do Artista, mas da cultura.

Há toda uma cauda longa (99%?) de técnicos, roteiristas, produtores culturais, seguranças, faxineiros, promoters, designers, críticos, blogueiros, jovens músicos, maquiadores que não recebem um tostão em propriedade autoral. Ainda menos no século 21, em que o processo sobreleva ao produto em si. Hoje a renda vem muito mais da circulação, do marketing, da constituição dos públicos, da interatividade, da abertura para o remix; do que das tradicionais obras magnas, --- aquelas gravadas no bronze da eternidade.

Para a indústria, não interessa remunerar essa massa de precários com Pontos de Cultura, editais democráticos, ação Griô etc. Os trabalhadores culturais precários, quando simplesmente não desistem dessa carreira, vêem-se na contingência de vender barato sua criatividade, assim como o artista jovem (na verdade quase todos) os seus "direitos autorais".

Sem ter pra onde correr, essa lógica de mercado mata dois coelhos de uma vez: 1) suprime a autonomia do produtor, obrigado a se subordinar aos patrões empresários, e 2) obriga-o a viver de bicos e contratos temporários, incapaz de negociar melhores condições.

Isso explica o porquê da centralidade da "criação" e do "criador" nos discursos da ministra e seus apoiadores. A indústria, com sua divisão social piramidal, é a melhor forma de valorizar o criador, o Artista, que fica no topo ,--- o rei-filósofo no comando da cidade da cultura. Esses medalhões, a maioria com mais de 50, não formam uma classe ("classe artística)". No máximo, uma corporação inadaptada e paranóica com os novos modos de produzir, organizada para tentar salvar os seus benefícios.

Por muito tempo a cultura brasileira se pautou pelo predomínio da "classe artística". Os holofotes da grande mídia contornavam sistematicamente a criatividade imanente do país, as produções de periferia e interior, dos pobres. Não foi o MinC que derrubou o negócio. Mas a sociedade. O MinC com Lula e Gil e Juca veio democraticamente a reboque, e potencializou esse movimento.

Antes, essa produção era tratada como folclore, num regionalismo condescendente, ou então como mística do povo --- e não como o coração e o sangue da criação do universo. Algo que somente artistas pensantes, como Gláuber, Oiticica ou Gilberto Gil, enxergavam já na década de 1960. Eis mais um dos motivos que a sociedade inventou e desenvolveu as mídias livres, ou que artistas mais seminais se deixaram invadir pela potência da multidão. Para se autovalorizar, pois a grande imprensa e indústria não davam valor.

Na cultura como mundo, os medalhões vêem ameaçado o seu status superdimensionado, por vezes narcísico. Essa superexposição de uns poucos é promovida pela indústria para codificá-los e valorizá-los como marca. E então extrair daí seu lucro, através da transmissão da imagem e do copyright. Claro, muitos sempre tiveram qualidade (quem vai dizer que Chico Buarque ou Caetano não sejam brilhantes?), mas quantos aí não foram golpes de marketing? Quantos filhos ou irmãs de celebridades não hauriram essa marca, por tabela?

O discurso pró-Ana de Hollanda retoma a mesma acusação de amadorismo, antes imputada ao "povão". Os Pontos de Cultura são ingênuos e demagógicos, funcionam num clima "meio estudantil" e não trazem resultados concretos. O mesmo tom de Hosni Mubarak, o ditador egípcio, quando a confrontado com a revolução 2.0. O mesmo tom de Luiz Carlos Barreto ou Cacá Diegues, que agora pretendem "acertar as contas" com os arranjos produtivos que os contornam (contornar a Globo Filmes, por exemplo). No fundo, eles pedem, e esperam que Ana de Hollanda conceda: não dêem o dinheiro pra esses moleques e merdinhas, dêem para nós... nós que somos os profissionais!

Quanta falta de generosidade... quanto preconceito em não crer na qualidade das pessoas!

Aí se explica, também, o discurso cultura-e-mercado, que desde FHC (cujo MinC tinha por slogan "A cultura é um bom negócio") não predominava de modo tão acintoso. Novamente, para desmerecer a produção em rede: insustentável.

Sustentável seria a indústria tradicional, articulada com a exploração da propriedade imaterial. Como se esta não dependesse historicamente de isenções, subsídios, "verbas de emergência", repasses diretos. Aqui, mercado ou estado atuam como unha-e-carne, planejando os investimentos. Por isso, seria tão central passar a investir em "indústrias criativas", --- um nome engenhoso para o projeto de enquadrar cabalmente a cultura ao mercado. Ou seja, à subordinação da produção cultural às corporações, ao emprego formal, ao copyright, à gestão centralizada dos recursos.

No ano passado no Rio de Janeiro, a aplicação das teorias da economia criativa, --- uma cria, aliás, do governo neoliberal de Tony Blair na Inglaterra, --- não fez mais do que concentrar os investimentos públicos (R$ 270 milhões) em mega-museus. Que serão explorados por quem? Pela Fundação Roberto Marinho.

Por enquanto, a ministra vai promovendo a "economia criativa" por onde passa, enquanto faz promessas à rede da Cultura Viva, que tudo vai continuar como antes, normalizado. A discussão da LDA? Perguntada, não é papel de ministra opinar, mas de uma comissão de especialistas jurídicos, que vai reapreciá-la. Novamente o discurso técnico, como se o regime de propriedade, material ou não, não fosse questão das mais políticas.

Enquanto isso, a secretária Marta Porto, que nem foi nomeada, correu o Brasil para abrir o diálogo com a rede de Pontões e Pontos de Cultura. O MinC está em dívida com a rede, com pagamentos atrasados na ordem dos R$ 60 milhões. As boas intenções são irrefutáveis, mas faltaram informações palpáveis de prazos, metas e o planejamento para a expansão prometida da Cultura Viva.

Basicamente, a questão colocada pela secretária foi a disjunção exclusiva: qualificar ou expandir? Isto é, arrumar a casa (numa crítica implícita à gestão anterior) ou crescer a rede? Para Ivana Bentes, diretora da ECO/UFRJ, é preciso qualificar e expandir, numa disjunção inclusiva. E quem deve qualificar o MinC são os Pontos, com sua experiência adquirida de democracia e produtividade, e não o inverso, uma gestão que começou agora.

É no mínimo sintomático como a Aliança Internacional de Propriedade Intelectual (IIPA) --- tão querida pelas mega-gravadoras, pelas majors do cinema e pela Microsoft --- passou a ver com bons olhos o governo brasileiro, quando, no governo Lula, estava na "lista negra". Quase ao mesmo tempo, no Fórum Social Mundial, em Dacar, os movimentos elaboraram e encaminharam uma carta à ministra, no sentido oposto, preocupado com possíveis retrocessos.

Por tudo isso, a luta não é por nomes ou números, mas por uma concepção global de política, cultura e sociedade. Por um projeto de democracia. O ministério da cultura exerceu papel ímpar no governo Lula, como vanguarda propositiva e qualificador das políticas públicas. Ainda foi pouco, e é preciso consolidar e ampliar as redes, mesmo que seja apesar, quiçá contra o novo governo.

Está ficando claro que isso dependerá muito mais da articulação e do movimento dos atores culturais, que continuarão produzindo na precariedade, e já mostraram não ser vacas de presépio, do que dessa gestão. O MinC voltou a ser só estado.

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Post Scripta.

Este blogue tem participado dos debates sobre as posturas do novo Ministério da Cultura encabeçado por Ana de Hollanda. Em 30 de janeiro, alertou sobre o teor conservador das primeiras atitudes da gestão. Uma semana depois, na entrada daqui mais lida em 2011, publicou um artigo mais completo, tratando de Pontos de Cultura, redes produtivas e indústrias criativas. Nele, se argumentou como os novos rumos desse MinC ameaçam as conquistas e os direitos potencializados pelo governo Lula, com os dois ministros da cultura anteriores, Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10). No dia 10 do mês passado, editou um terceiro texto, mais específico sobre a propriedade autoral e seu tratamento no novo ministério, comentando opiniões de Caetano Veloso e sua incorporação ao site oficial da pasta.

Recomendo os seguintes textos sobre o mesmo assunto:

A voz dos poucos e barulhentos, por Rodrigo Savazoni (Trezentos)

Anticultura ou Anna e a cultura de mercado, por Danilo Marques (O Inferno de Dândi)
O poderoso lobby multinacional do ECAD, por Carlos Henrique Machado, de quem aliás tirei a sugestão de título. (Cultura e Mercado)
MinC se torna ministério problema, por Renato Rovai (Blog do Rovai)
Também valem muito ler, sobre o tema, os textos elegantes e densos de Cézar Migliorin, em geral, no seu blogue Polis + Arte

Postado por Bruno Cava às 18:40

Adv.André Barros