quinta-feira, 13 de outubro de 2011

DAS REVOLTAS A UMA NOVA POLÍTICA Toni Negri e Michael Hardt

Toni Negri e Michael Hardt oferecem reflexões para superar três pilares do capitalismo: propriedade, trabalho subordinado e representação
*Prefácio à edição em castelhano de “Commonwealth — El proyecto de una revolución del común”
Por Toni Negri e Michael Hardt | Tradução: Daniela Frabasile
Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.
Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.
Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.
Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.
A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.
Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.
Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.
No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.
Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.
De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?
Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.
Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.
Mais:
Leia nossa resenha de Commonwealth
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Baixe grátis o prefácio original “El devenir príncipe de la multitud” (em castelhano)

Adv.André Barros