sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O DIREITO DO COMUM

ANTONIO NEGRI

Dissolução. Cientistas do direito têm destacado algumas características-chave da governança global: a tendência dos processos e práticas de governança ultrapassarem a rigidez dos sistemas jurídicos e das estruturas reguladoras; a fragmentação do sistema jurídico sob a pressão do conflito global e a colisão de diferentes gêneros e espécies de normas. A governança global mina qualquer tentativa de unificar os sistemas jurídicos frente à necessidade universal de operar em um lógica modular, com a qual seja possível gerir conflitos e assegurar a compatibilidade legal dos fragmentos do mundo global. Neste sentido, a governança global é de fato um “governo do estado de exceção”, (obviamente na direção oposta daquela teorizada por Carl Schmitt para definir soberania).

Parece-nos que esta conclusão é correta e que, em um mundo globalizado, a desconstrução das formas tradicionais do direito e da soberania é inevitável. Em suma, devemos aceitar que a governança global é “pós-democrático” no sentido de que ela não suporta mais o sistema representativo original e radical, que apoiou e garantiu a legitimidade do Estado É fato que os órgãos, as técnicas e as práticas de governança global possuem a flexibilidade e a fluidez necessária para se adaptarem a situações de mudança de forma consistente, e que sua aplicabilidade pode ser atribuída a uma pluralidade de formas controladas de regulamentação, muitas vezes de forma indireta, por oligarquias e oligopólios, especialmente os econômicos.

Certo. Mas esta análise da crise do direito e da soberania na globalização, com o forte conteúdo de desconstrução que a caracteriza, não consegue lidar com o outro termo (não ao mesmo tempo e de forma síncrona) posto neste contexto: o tema do “comum”.

Observamos primeiro que os termos global e comum não são coextensivos. Considerá-los como tal, é banalizá-los (Nancy, Esposito, etc.) Pelo contrário: qualquer seja a sobreposição política e jurídica, global é sempre um termo espacial; e, comum é sempre uma categoria de produção (com impacto significativo sobre o campo ontológico). Por quê, então combiná-los? Porque a globalização é a causa dessa ligação entre dois conceitos ou categorias tão diferentes? Claro, de modo superficial, porque na forma em que são reduzidos, não se trata de uma definição categórica e, muito menos, da constituição do comum. Na verdade, a mundialização é o motor caótico da pulverização e/ou da imprevisibilidade da atividade especialmente determinada pelo fluxo residual (não por isso menos eficaz) das ações soberanas.

Se não contarmos com uma abordagem ideológica, poder-se-ia supor que o termo “comum” intervenha na discussão como um tema central, quando, na verdade, a globalização e as práticas legais que a acompanham, o transcendental do direito privado e do direito público e consequentes práticas jurídicas que a sobre-determinam, falhamos completamente em sua definição. Parece que há aspectos, dimensões, perfis do “comum” que – se não dermos uma resposta concreta à crise de sobre e subdeterminação da ordem global – não requalificam o terreno discursivo. Retomaremos este assunto mais tarde. Ponha-se desta maneira: em razão da dissolução, não somente jurisprudencial, mas conceitual do “velho direito”, como é que se estabelece o tema do “comum”?

História. A hipótese majoritária retem que o velho direito é definido, essencialmente, com base no conceito da propriedade privada. Esse horizonte hipotético não é ultrapassável? E, então, frente à dissolução que se constrói sobre o campo da governança global do direito, como configurar a permanência do direito? Sob qualquer ponto de vista, uma análise material e dialética em torno deste argumento, parece confirmar que a dissolução determinada pela globalização, historicamente demonstrada e refletida em sua crise atual, confirma a impossibilidade da evolução do direito privado e do direito público a outro tipo de direito, um tertium genus. Menos ainda, explicitamente, sua evolução a uma “lei comum”. Deve-se acrescentar imediatamente aqui que o termo “lei” é tão ambíguo e impreciso quanto o termo “comum”.

Prova disso é quando você considera o continente direito. Na cultura ocidental, a dimensão jurídica torna-se crucial desde o momento em que se organizou em torno da figura (por isso, ficcional) do indivíduo-proprietário. O quadro institucional (e conceitual) da lei ocidental tem suas raízes nas necessidades do indivíduo, moldado nas relações conflituosas (de soma zero) que ele tem com o seu homólogo, no caso. O estabelecimento do Corpus Juris de Justiniano serve como ponto culminante da evolução do direito no mundo romano, e o que lhe dá forma e constituição nos próximos dois mil anos de história legal. Assim, o direito romano será reaprendido e treinado de acordo com as necessidades do capitalismo nascente. É a interpretação deste, de forma adequada, que servirá de instrumento para organizar a acumulação primitiva de capital. É uma característica desta história o fato de que os procedimentos jurídicos, processuais e jurisprudenciais consolidaram o direito do indivíduo-proprietário e produziram um mecanismo de validação uniforme da propriedade (o mercado) e da soberania (o Estado). Ambos sistemas (mercado e Estado) concentram seu poder sobre o indivíduo excluindo qualquer outro sujeito da esfera de jurisdição dada. Rhodus Hic, hic salta. Procurar, neste âmbito, uma passagem para além da estrita concepção privatística do direito e de seus procedimentos de aplicação e verificação é inútil. Consequentemente, a busca de uma definição para o “comum” nesta área é completamente inadequada. O direito de tradição continental (notadamente romano-germânico) não permite reconhecer o “comum” do modo que historicamente é interpretado. A fronteira entre o público e o privado (aquilo que vai do conflito à soma zero) não deixa espaço, até agora, para a definição de um terceiro polo.

O vazio conceitual ocorre, mesmo quando tomamos a tradição da antiga lei saxônica que é chamada de common law – que podemos traduzir como um direito “para” o comum, para o ordinário do povo. Se trata de um direito arcaico intimamente ligado às estruturas tradicionais comunitárias das cidades medievais. Porém, Maitland e Polock quando analisam este “direito para o ordinário do povo” advertem que, longe de ser um direito do “comum”, é um direito individual, um direito que não está em relação de ruptura com o individualismo jurídico, ou seja, com o interesse da propriedade. Na verdade, é um direito que o indivíduo pode opor ao público, um direito que de nenhum modo pode reconduzir à essência do “comum”, àquela “equidade na coprodução de norma jurídica não estatal” (que é a recente definição do direito do “comum”). Não é mera coincidência que as definições sobre o “comum” são tomadas emprestadas aos anos ‘50, por exemplo de Hayek, e são perfeitamente conhecidas em seu sentido e significação.

Parece ser muito difícil reconhecer um direito do “comum” que nasce dentro das velhas estruturas jurídicas (mercado, Estado) e delas se emancipa. Tanto mais, se (como frequentemente se teoriza no campo do socialismo jurídico) se pensa que a evolução do direito público, em função antagonista ao direito privado, forneça uma base para a transição ao direito do “comum”. Interessante, a propósito, é a referência sobre a experiência soviética. Pasukanis – o maior jurista do tempo – viu imediatamente com grande clareza. Não se dá – disse ele – o direito proletário “com a mera transição para a fase do socialismo desenvolvido. O desaparecimento das categorias de direito burguês significa a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento gradual do momento jurídico na relação entre os homens”. Quanto ao Estado soviético, este é definido como um capitalismo de Estado proletário. No capitalismo de Estado proletário, são dadas, de acordo com Pasukanis, as duas realidades do intercâmbio e do direito. A primeira consiste numa vida econômica que se desenvolve de forma “pública” (programas gerais, planos de produção e distribuição, etc). A segunda consiste na ligação entre as unidades econômicas que realizam suas atividades “na forma do valor do valor das mercadorias circulantes e, em seguida, na forma jurídica do contrato”. Agora é evidente, que a primeira tendência (de direito público e planejamento) não apresenta qualquer perspectiva progressiva e se abre somente para uma extinção e gradual da forma jurídica em geral, refletida somente na gestão econômica da sociedade. A segunda tendência é a que, possuindo as formas de autonomia econômica, e considerando-as na suas formas de cooperação e interação, é que poderá crescer em direção ao “comum”.

Curioso é notar que no discurso soviético (minoritário, mas marxianamente correto) de um Pasukanis, venha sublinhada a impossibilidade de extração do direito do “comum” do direito público e venha, ao invés disso, considerada a possibilidade jogar sobre a cooperação do trabalho coletivo, não só como uma saída para a construção privatista do direito, mas também como uma construção de novas formas de vida e de organização social não-capitalísitica (o “mercado sem capitalismo” - do camponês chinês comum, em Arrighi é um modelo com a mesma ressonância).

E a história atual? Na qual se afirmam os procedimentos de governança, nos dá alguma indicação positiva de uma transição para o “comum”? É possível entrever, nos procedimentos de governança, uma “tendência à descentralização” contra a forte propensão à concentração do poder capitalista global sobre o mundo? À fragmentação dos poderes contra a sua unidade econômica sólida? À possibilidade de controle difuso por parte de uma opinião pública ativa? à experimentação de fundo dos mecanismos de participação na divisão social do trabalho e na redistribuição da riqueza? Com elevado otimismo, poderíamos imaginar, mas na realidade vemos que a governança é concebida como um exercício de poder e produção de normas jurídicas, como modalidade institucional aberta, flexível, de geometria variável, em um programa jurídico livre de centro e dependente de mecanismos de conflito entre normas e de competição entre ordenamentos – bom, que sobre este modelo já se sabe de há muito utópico e que a história atual mostra bastante a impossibilidade de um desenvolvimento linear do sistema legal vigente em direção a um sistema de direito do “comum”.

Factual. Tendo dito o que temos dito, resta perguntar por que o mundial recorda o “comum”. A lembrança surge porque a globalização, por contraste, nos situa imediatamente à frente de um outro “comum”, por assim dizer “ruim”: o ordinário do capital. A transformação da lei do valor (quando a medida do tempo de trabalho substituiu o seu poder de cooperação, e os dispositivos de circulação de mercadorias, serviços, indústria e comunicação surgem como agentes da exploração capitalista, quando o processo de subsunção real, isto é, da transição da produção industrial de bens para o controle da vida social envolvida no trabalhar, com a automação e informatização da produção – bem, tudo isto tem o capital como biopoder global. A nova base em que aexploração se instaura e efetiva, consiste em uma transição progressiva do comando da fábrica (organização e disciplina do taylorista e fordista em massa dos trabalhadores) para o controle da sociedade (através da hegemonia do trabalho imaterial na produção, da valorização através do trabalho cognitivo, do controle financeiro, etc): vale dizer que a nova base sobre a qual opera o capital é a de explorar a cooperação, as linguagens, as relações sociais comuns (reside, em geral, nas chamadas “externalidades social”, internalizadas à produção capitalista em escala global).

Um só exemplo, partindo da atual crise econômica global. Muitas são as leituras que são feitas. Em todo caso, vindo da direita ou da esquerda, as razões para a crise eram reputadas ao “descolamento” entre as finanças e a “produção real”. Se assumirmos o novo pressuposto de que temos falado até aqui, se refere ao surgimento de uma nova qualidade de trabalho vivo “comum” e a sua exploração como tal, insistiremos que a “financeirização” da economia global não é um desvio improdutivo ou parasitário de quantidades crescentes de mais-valia e de poupança coletiva, mas uma nova forma de acumulação de capital, simétrica aos novos processos de produção de valor social e cognitivo. Para superar esta crise, é inútil fingir que a resposta possa evitar a construção de novos direitos de propriedade sociais e de bens “comuns” – e esses direitos, obviamente opõe-se ao direito de propriedade privada e exigem a ruptura daquele direito público no qual a propriedade privada representa a força de lei.

[Repetir como elaborado no Uninomade workshop: “se, finalmente, agora o acesso as bens comuns, tomou a forma de ‘dívida privada’ (é somente em torno do acumulação desta dívida que a crise explodiu), hoje, então é, pois, legítimo reivindicar o mesmo direito na forma de “renda social”. Reconhecer estes direitos comuns é, portanto, a única maneira e justa via para acabar com a crise”].

Aproximações 1. O direito tradicional não pode, portanto, definir (e até mesmo a recorrer) ao “comum”. Estará sempre constrito, na atual crise, a um ato de governança, por assim dizer, restritiva e condenada a uma ambiguidade substancial. A governança não pode realmente fazer fluir o intercâmbio social e, ao mesmo tempo, otimizar o fluxo. Isto significaria transcrever a soberania em termos negociais, desfazer a hierarquia das estruturas de decisão, introduzir uma perspectiva de relações fragmentadas e policêntricas, enfraquecer a tradicional separação entre público e privado -, mas não poderia fazer nada mais que isso. Chignola nos lembra, seguindo as pegadas de John Fortescue e do juiz Coke: “o termo governança refere-se, desde o início, tanto ao governo enquanto pessoalmente referido como o direito do príncipe a comandar, quanto à hierarquia de cargos administrativos que dele depende, como, muitas vezes, ao conjunto de normas, costumes, estatutos e liberdades que definem o entrelaçamento do direito e dos poderes de organização político civis”. No pôr-do-sol do Estado de Direito são repetidas os mantras do seu alvorecer.

Diminuindo a desconfiança com que até agora temos lidado com com o conceito de governança, admitindo, todavia, que ela pode abrir-se em termos constituintes, em condições diversas às que tem se apresentado. Assumamos que o terreno do “comum” que se apresenta mais próximo, como um campo de transição do público ao “comum” e que a governança se adapte à esta transição: a pergunta a fazer, neste momento, seria: se o direito tradicional não consegue definir (para controlar, para transcrever, para estabelecer) o do “comum” – de que modo pode a governança aproximar-se dele? Isto é: a governança (ambiguamente, expressando uma espécie de cognato) pode construir o novo direito?

Aproximações 2. Do ponto de vista reflexivo da filosofia do direito tentamos aqui levantar a questão de como se define “o comum”. Proponho qualquer exemplo que representem os casos (mesmo os que resultem em combinações infinitas), mas que talvez possa ajudar-nos a prosseguir.

Por um lado, então, o “comum” foi definido em termos de um darwinismo sociopolítico como o efeito das relações de coprodução econômicas e políticas. A este respeito, é bem conhecida a famosa fórmula de Saint Simon, retomada por Marx e Engels, segundo a qual a “administração das coisas” tomará o lugar do “governo dos homens”. O “comum” aqui é revelado como a administração econômica da sociedade em si. Ao auto-equilíbrio que o mercado neoliberal sugere, o socialismo responde com a auto-organização econômica consciente dos homens. Essa fórmula retorna constantemente no socialismo, pelo menos até os escritos de Lênin. Isto trata, evidentemente, de uma teleologia do “comum”, enervada na racionalidade tecnológica industrial. O “comum” é um “feito” (fatto particípio do verbo fare) “um movimento real que efetiva um estado das coisas atual”.

Um modelo diferente de definição do “comum” é aquele sociológico institucional. O desenvolvimento, da sociedade civil às formas de organização pública, até um conceito do “comum” concebido como resultado societário ou associativista, é visto e apontado como o produto de uma atividade contínua. À necessidade de base económica e tecnológica do primeiro modelo, aqui se opõe um ativismo processual e social. Considerado em suas figuras mais recentes, o “comum” de forma “institucional” é definido (p.ex. em Luc Boltanski) por meio do abandono da sociologia que se concentra no acento sobre a dimensão vertical e sobre a opacidade da consciência alienada dos atores, em vantagem de uma sociologia que insiste sobre relações horizontais (e, claro, redes) e sobre a ação “situada” de atores guiados por razões estratégicas ou necessidades morais. Os elementos da “performatividade” do social são colocados em primeiro plano e, mesmo que o público (o Estado) seja chamado e assunto (assumido) como elemento de equilíbrio do processo, este institucionalismo sociológico pragmático reconhece as contradições dentro das quais se processa, portanto, fecha, o poder de seus dispositivos abertos. Em suma, “um movimento real, que faz atual um estado de coisas.”

Um terceiro modelo interessante (que representa a média dos extremos), sempre a partir da perspectiva de uma definição de “comum”, é a reapresentação de uma teoria filosófica dialética (débil) das relações. Um caminho sobre o qual tinha avançado o formalismo de Habermas e sobre o qual procede o realismo de Honneth. O “comum” é visto aqui como uma Aufhebung (fraca), desnecessária. A dificuldade de sua realização consiste em determinar – no indefinido contexto de condições – a compossibilidade das diferenças. Experimentamos coisas que, para outros, que quase se tornam evidentes no desenvolvimento do projeto foucaultiano, quando se considera um modelo epistemológico mais importante do que um dispositivo político.

Estas aproximações são assim. Todos atacam a ideia de que o “comum” pode ser de alguma maneira pressuposto e afirmam a suposição de que só podemos pensar as práticas sociais de produção do “comum”. Como a governança pode interpretar, e possivelmente ir além, dessas premissas em um caminho que leva para o “comum”?

Para evitar novos obstáculos, perguntamos aqui se uma determinação de ação em comum deve necessariamente ter uma forma de “instituição”, quando se avança sobre este campo. Ao se responder negativamente à questão se poderá preferivelmente insistir que a produção de regras não relevantes na legislação podem assumir uma forma de uso negocial, de práticas do “comum” que não podem se dar senão através de determinações concretas e de relações de poder. Neste contexto, se poderá ainda depois perguntar: como articular o terreno da propriedade com o terreno da utilidade? Quais são as condições de compossibilidade dos indivíduos/singularidades? Como evitar a força da solidez da identidade encerre qualquer possibilidade de compresença de singularidades? Quais são os processos de subjetivação medeiam através destes processos constitutivos? O estabelecimento do “comum” não “aditivo” e tampouco “integrativo”, um “comum” que não é “somma” nem mesmo “organismo” pode ser dar-se fora de uma progressão (ou regressão, forte ou tênue) da dialética hegeliana?

Para responder à pergunta e sobre algumas outras questões/experiência.

Experimento 1. Se assumirmos que o contexto da governança, em que a pluralidade de atores desenvolve a sua ação, é desprovida de qualquer determinação finalística ou de valor; se toda determinação é um poder que ganha (ou perde) em comparação com outros poderes, o primeiro exemplo jurídico que se pode referir à busca do “comum”, é aquele tradicionalmente representado pelo direito internacional de guerra. Aqui, paradoxalmente, o “comum” se desliga do global. Este é certamente um campo livre de formalismos. São, de fato, evidentes os riscos que se corre, no caso de pretende operar aqui com conceitos de governo liberal, de direito ou doutrinas de justiça ancoradas nos diagramas do racionalismo metafísico abstrato. Assim fazendo, diminuir-se-ia a prática jurídica para a simples memorização de fatos – e esta é a maneira pela qual a sociologia e empirismo realistas conduziram-nos a um campo (definido por Carl Schmitt no direito internacional como o não-direito), onde a governança é definida pela ausência de qualquer possibilidade de nomos. Estamos novamente imersos na dissolução. O experimento de direito internacional não modifica a dissolução senão através do deslocamento. Este deve por-se sobre o terreno da globalização, como uma nova reflexão. Que reconheça o antagonismo básico entre eles, em todos os sentidos, mova o processo de revisão, o que elimina qualquer homologia com o passado, todas as referências a antigas constituições internacionais, para construir ovos e eficaz regulamentos provisórios sobre as novas áreas e temas (biopolítica e, especialmente, os meios de comunicação financeira) etc, etc.

Um segundo exemplo é o dos direitos sindicais, na luta de classes. Na transição pós-fordista e durante o curso da crise econômica – desfeito o compromisso do Reno e, em geral o contratualismo industrial, mais ou menos corporativo – o problema da regulação do trabalho social e de redistribuição do “produto interno bruto” tornaram-se questões agora quase livres de todos estatutos jurídicos, deslocadas do terreno da produtivo diretamente ao da (re)produção social. Mesmo neste caso, qualquer homologia com as lei sindicais do passado é em vão, mesmo aqui há uma iniciativa para abrir um processo constituinte. No entanto, o que é, hoje, é também neste caso, um terreno caracterizado por determinações semelhantes às estabelecidas no direito internacional – um verdadeiro desastre das formas jurídicas tradicionais. Para o momento parecem possíveis apenas táticas de operações de resistência.

Experimento 2. É a linha da Commonwealth. Ele nos força a enfrentar o problema de um eventual direito do “comum” do ponto de vista de uma ontologia do “comum”.

Este caminho começa a partir do reconhecimento da construção e da sujeição funcional do “comum” por parte do capitalismo global, financeiro, militar. Longe de propor processos de reconhecimento puro ou de apropriação da estrutura e das figuras do “comunismo de capital” e seu Estado, esta linha de pensamento sugere conceber os processos de governança como instrumento de ulterior desestruturação do direito tradicional e, em segundo lugar, objetiva o procurar, no interior dessa desestruturação, o emergência de novas figuras de cooperação produtiva.

A única saída, em relação a essas questões, parece ser:

1. A reafirmação do tema do “comum” em um campo que não é socialmente homogêneo, que não provê institucionalidade nem homologia pre constituinte, mas é atravessado por antagonismos originais: por um lado há uma força de trabalho, mais e mais precária, que reconhece sua autonomia do capital; de outro, está a relação de comando que o capital está sempre em busca de renovar. A solução desses conflitos não pode dar-se segundo alguma determinação teleológica ou dialética. É um contexto maquiavélico dentro do qual se move. Cada determinação é uma potência que ganha (ou perde) em comparação com outra potência. O sentido do processo aqui é identificado ao quanto assimilado e produzido pelo poder (potência) de decisão coletiva.

2. Neste quadro, o “comum” não pode ser colocado em continuidade com a tradição jurídica, não pode configurar-se como um terreno dentro do qual se propõe, a partir do exterior, as ideias de justiça… pode somente conter a construção dos usos e governar-se em imanência, em sua reciprocidade e mútua. O direito internacional (como não-direito propriamente) é, a partir deste ponto de vista, o modelo ao qual podemos nos referir (mas em sentido inverso, ao contrário do modo como Carl Schmitt abordou a questão).

3. A inversão de perspectiva schmittiana, não de recuperação de “exceção”, mas na insistência de um “excedente” do trabalho cognitivo, a assunção de um contexto bio-político adequado, etc, em suma, o estudo das doutrinas e das práticas desestruturantes do direito ocidental e o exercício (na desconstrução do direito) do poder constituinte, constituem a única reposta viável hoje sobre estas questões.

Pasukanis, nos anos 20, havia proposto algumas linhas muito interessante: “é bastante claro que a lógica dos conceitos jurídicos corresponde à lógica das relações sociais em uma sociedade que produz bens e que, é propriamente nestas relações e não na permissão de uma autoridade, que há de ser encontrado a raiz do sistema de direito privado. A lógica das relações de dominação e subordinação, portanto, são apenas parcialmente abrangidos pelo sistema de conceitos jurídicos. Assim, o conceito jurídico de Estado nunca pode tornar-se uma teoria e sempre será a alteração ideológica dos fatos”. Imaginar um direito do “comum” (mas por que falar agora de direito, não é?) deve, desse modo, – uma vez desestruturada a constituição proprietária - a partir da pluralidade, da rede de relações de trabalho com formas de regulação, o que compreende o desenvolvimento do potencial das relações de produção sociais – que são, na equidade e no interior do que é coproduzido, normas jurídicas não-estatais para regular a vida em comum.

Devemos seguir o exemplo de fenômenos cooperação da força de trabalho, da auto valorização, introduzindo um excedente de capacidade de produção do trabalho individual e coletivo; necessário caminhar ao longo do interior dos fenômenos financeiros, revelando o poder das relações simétricas entre a produção social e o sistema de signos – reinventando provavelmente a este nível, uma teoria da “valor-trabalho” (e sua medição). É só neste caso, será possível estabelecer as linhas que, por exemplo (e não simplesmente em termos táticos, mas finalmente estratégicos), subindo da condição do Welfare ao “comum” (que sob esta luz, começa a se definir como um espaço de participação democrática mais igualitária de distribuição).

Nota para nota de Teubner. (Hardt e Negri) Teubner começa de modo confuso alguns conceitos do Commonwealth, mas em sua caracterização definitiva das diferenças e semelhanças entre o seu e o nosso caminho é muito justo e generoso

Há duas semelhanças com a nota: 1. O reconhecimento da insuficiência da alternativa entre as soluções neo-liberal de mercado e as soluções keynesianas ou socialistas (Estado). Se uma terceira via ainda não foi dada, é preciso inventá-lo.

2. valorização da pluralidade do campo social e a insistência em um movimento político baseado na multiplicidade. Bem até agora.

A primeira crítica de Teubner é, de fato – quando chega o final de seu discurso – que nós sustentamos uma solução política unificada e totalizante político que trai nossa crença inicial na multiplicidade. Sobre este ponto, nós aderimos à insistência quanto à multiplicidade de Teubner, simplesmente colocando neste contexto, a necessidade de “fazer multidões”, ou simplesmente de fazer sociedade – não como uma totalidade social unificada, mas como um contexto coerente de relações sociais estáveis. Nós não acreditamos que estejamos muito longe de Teubner sobre essa questão.

Acreditamos, todavia, que a discussão vai se extende em profundidade quanto à utilização dos conceitos sobre os setores público e privado. De acordo. Em primeiro lugar, com o uso de que Teubner faz do conceito de “público”. Ele quer destruir o Estado e usa este conceito para muitas das determinações a que nós chamamos pelo termo “comum”. A questão fica mais complicada quando ele quer recuperar o conceito de “privado”. De passagem, ele diz que se pode estar de acordo com a nossa crítica da propriedade privada, mas que ainda existem muitos outros usos para o conceito, que ele gostaria de manter privados. Nós nunca dissemos que todas as garantias para o que Teubner quer manter como privado devem ser jogadas fora. Pelo contrário. Gostaríamos de caracterizá-los, ao invés de usar a noção de privacidade (privacy), com os conceitos de autonomia e liberdade, conceitos estes que são muito diferentes porque são fundados não sobre a separação e proteção, mas sim sobre nosso poder (power).

Finalmente – talvez o mais importante – cremos que Teubner subestima a intensidade da nossa crítica à propriedade privada, ou melhor, subestima a transformação social radical exigida pela abolição da propriedade privada. Ele assume que todos os outros significados da “privacy” (fora da propriedade) são neutros com relação à propriedade “privada” -, enquanto nós acreditamos que eles estão intimamente envolvidos. Em suma, gostaria de aprofundar com Teubner o argumento de Psukanis, quando ele demonstra que a propriedade privada funda o direito burguês (e capitalista), enquanto as outras energias da singularidade (a responsabilidade no trabalho, a alegria da pesquisa científica, a solidariedade social etc) permitem que você construa o “comum”. Estamos tão convencidos disto que não nos parece estranho que o “comum” possa ser construído a partir das virtudes pessoais, em detrimento da força do público, do Estado (que novamente se ergue para garantir a proteção da propriedade). Teubner pode não perceber as condições em que a propriedade privada, em todos os contextos, ameaça os jogos de linguagem que ele deseja preservar.

(tradução do original italiano para o português por @sergiorauber)

Adv.André Barros