André Barros, 51 anos, carioca, mestre em ciências penais, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e advogado da Marcha da Maconha. Entrou na Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ em 1989, onde foi delegado, membro, Secretário-Geral e atualmente Vice-Presidente.
terça-feira, 12 de março de 2013
VOTO CELSO DE MELLO NO JULGAMENTO DA MARCHA DA MACONHA
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 187 DISTRITO
FEDERAL
V O T O
(s/ mérito)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Superados
os aspectos preliminares que venho de mencionar, passo a analisar a
pretensão deduzida na presente argüição de descumprimento de preceito
fundamental.
Antes de fazê-lo, contudo, desejo enfatizar que este
processo de controle de constitucionalidade não tem por objetivo
discutir eventuais propriedades terapêuticas ou supostas virtudes
medicinais ou, ainda, possíveis efeitos benéficos resultantes da
utilização de drogas ou de qualquer substância entorpecente
específica, mas, ao contrário, busca-se, na presente causa, proteção
a duas liberdades individuais, de caráter fundamental: de um lado, a
liberdade de reunião e, de outro, o direito à livre manifestação do
pensamento, em cujo núcleo acham-se compreendidos os direitos de ADPF 187 / DF
2
petição, de crítica, de protesto, de discordância e de livre
circulação de idéias.
I. O direito de reunião e a liberdade de manifestação do
pensamento: dois importantes precedentes do Supremo Tribunal Federal
Postula-se, nesta argüição de descumprimento de
preceito fundamental, seja dado, ao art. 287 do Código Penal,
interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer
exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das
drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive
através de manifestações e eventos públicos” (fls. 14 – grifei).
Tenho para mim, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal
Federal defronta-se, no caso, com um tema de magnitude inquestionável,
que concerne ao exercício de duas das mais importantes liberdades
públicas – a liberdade de expressão e a liberdade de reunião – que
as declarações constitucionais de direitos e as convenções
internacionais – como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa
Humana (Artigos XIX e XX), a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Arts. 13 e 15) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos (Artigos 19 e 21) – têm consagrado no curso de um longo
processo de desenvolvimento e de afirmação histórica dos direitos
fundamentais titularizados pela pessoa humana. ADPF 187 / DF
3
É importante enfatizar, Senhor Presidente, tal como
tive o ensejo de assinalar em estudo sobre “O Direito Constitucional
de Reunião” (RJTJSP, vol. 54/19-23, 1978, Lex Editora), que a
liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito
à livre expressão das idéias, configurando, por isso mesmo, um
precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação
do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar.
Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade
estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de
respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações
expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que
constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida
pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la,
para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de
discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder.
Guardam impressionante atualidade, Senhor Presidente,
as palavras que RUY BARBOSA, amparado por decisão desta Corte,
proferiu, em 12 de abril de 1919, no Teatro Politeama, em Salvador,
durante campanha presidencial por ele disputada, em conferência cuja
realização só se tornou possível em virtude de “habeas corpus” que o
Supremo Tribunal Federal lhe concedera, tanto em seu favor quanto em ADPF 187 / DF
4
benefício de seus correligionários, assegurando-lhes o pleno
exercício da liberdade de reunião e do direito à livre manifestação
do pensamento, indevidamente cerceados por autoridades estaduais que
buscavam impedir que o grande político, jurisconsulto e Advogado
brasileiro divulgasse a sua mensagem e transmitisse as suas idéias
ao povo daquele Estado, com o objetivo de conquistar seguidores e de
conseguir adesões em prol de sua causa, valendo reproduzir, no
ponto, a seguinte passagem daquele pronunciamento:
“Venho, senhores, de Minas, venho de S. Paulo (...).
De S. Paulo e Minas, onde pude exercer
desassombradamente os direitos constitucionais, as
liberdades necessárias de reunião e palavra, franquias
elementares da civilização em tôda a cristandade. De
Minas e S. Paulo, cujos governos, contrários ambos à
minha candidatura, nenhum obstáculo suscitaram ao uso
dessas faculdades essenciais a tôdas as democracias, a
tôdos os regimens de moralidade e responsabilidade:
antes abriram, em volta dos comícios populares, em
tôrno da tribuna pública, um círculo de segurança e
respeito, em que as nossas convicções se sentiam
confiadas nos seus direitos e os nossos corações
orgulhosos do seu país. De S. Paulo e Minas, em suma,
onde o respeito da autoridade ao povo, e a consideração
do povo para com a autoridade, apresentavam o
espetáculo da dignidade de uma nação obediente às suas
leis e governada pela soberania.
...................................................
Venho dêsses dois grandes Estados, para uma visita
a êste outro não menor do que êles na sua história, nas
virtudes cívicas dos seus habitantes, nos costumes da
sua vida social, venho, também, a convite da sua
população; e, com que diversidade, com que contraste,
com que antítese me encontro! Aqui venho dar com o
direito constitucional de reunião suspenso. Por quem?
Por uma autoridade policial. Com que direito? Com o ADPF 187 / DF
5
direito da fôrça. Sob que pretexto? Sob o pretexto de
que a oposição está em revolta, isto é, de que, contra
o govêrno, o elemento armado e o Tesouro juntos estão
em rebeldia os inermes, as massas desorganizadas e as
classes conservadoras.
Banido venho encontrar, pois, o direito de reunião,
ditatorialmente banido. Mas, ao mesmo tempo, venho
encontrar ameaçada, também soberanamente, de proscrição
a palavra, o órgão do pensamento, o instrumento de
comunicação do indivíduo com o povo, do cidadão com a
pátria, do candidato com o eleitorado. Ameaçada, como?
Com a resolução, de que estamos intimados pelo
situacionismo da terra, com a resolução, que, em tom de
guerra aberta, nos comunicaram os nossos adversários,
de intervir em tôdas as nossas reuniões de propaganda
eleitoral, opondo-se à nossa linguagem (...).
...................................................
Mas, senhores, os comícios populares, os
‘meetings’, as assembléias livres dos cidadãos, nas
praças, nos teatros, nos grandes recintos, não são
invento brasileiro, muito menos desta época (...). São
usos tradicionais das nações anglo-saxônicas, e das
outras nações livres. Tiveram, modernamente, a sua
origem nas Ilhas Britânicas, e nos Estados Unidos.
Dessa procedência é que os recebemos. Recebemo-los tais
quais eram. Com êles cursamos a nossa prática do
direito de reunião. Com êles, debaixo do regímen
passado, associamos a colaboração pública à reforma
eleitoral, apostolamos e conseguimos a extinção do
cativeiro. Com eles, neste regímen, não pouco temos
alcançado para cultura cívica do povo. (...).
...................................................
(...) O direito de reunião não se pronuncia senão
congregando acêrca de cada opinião o público dos seus
adeptos.
A liberdade da palavra não se patenteia, senão
juntando em tôrno de cada tribuna os que bebem as suas
convicções na mesma fonte, associam os seus serviços no
mesmo campo, ou alistam a sua dedicação na mesma
bandeira. A igualdade no direito está, para as facções,
para as idéias, para os indivíduos, no arbítrio,
deixado a todos sem restrição, de congregar cada qual
os seus correligionários, de juntar cada qual os seus
comícios, de levantar cada qual o seu apêlo, no lugar
da sua conveniência, na ocasião da sua escolha, nasADPF 187 / DF
6
condições do seu agrado, mas separadamente, mas
distintamente, mas desafrontadamente, cada um, a seu
talante, na cidade, na rua, no recinto, que eleger, sem
se encontrarem, sem se tocarem; porque o contacto, o
encontro, a mistura, acabariam, necessàriamente, em
atrito, em invasão, em caos.” (grifei)
O alto significado que o direito de reunião, assume nas
sociedades democráticas foi acentuado, em tempos mais recentes, pelo
Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 1.969/DF,
Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, quando esta Corte, em
sessão de 28/06/2007, declarou a inconstitucionalidade do
Decreto nº 20.089/99, editado pelo Governador do Distrito Federal,
que vedava “a realização de manifestações públicas, com a utilização
de carros, aparelhos e objetos sonoros”, em determinados locais
públicos, como a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos
Ministérios, em decisão que restou consubstanciada em acórdão assim
ementado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE
REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA
AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
I. A liberdade de reunião e de associação para fins
lícitos constitui uma das mais importantes conquistas
da civilização, enquanto fundamento das modernas
democracias políticas.
II. A restrição ao direito de reunião estabelecida
pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência,
mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional
quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille
zur Verfassung). ADPF 187 / DF
7
III. Ação direta julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99.”
(grifei)
Cabe rememorar, neste ponto, Senhor Presidente, a
importantíssima decisão, por mim anteriormente mencionada, que esta
Suprema Corte proferiu há 92 (noventa e dois) anos, em 1919, nos
autos do HC 4.781/BA, Rel. Min. EDMUNDO LINS, em cujo âmbito se
buscava garantir, em favor de diversos pacientes, inclusive de Ruy
Barbosa, o exercício do direito de reunião (e, também, porque a este
intimamente vinculado, o de livre manifestação de crítica ao Governo
e ao sistema político, bem assim o direito de livremente externar
posições, inclusive de não conformismo, sobre qualquer assunto), em
comícios ou em encontros realizados em prol da candidatura
oposicionista de RUY, que se insurgia, uma vez mais, contra as
oligarquias políticas que dominaram a vida institucional do Estado
brasileiro ao longo da Primeira República.
Nesse julgamento, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal concedeu ordem de “habeas corpus” em favor de RUY BARBOSA e
de diversos outros pacientes, proferindo, então, decisão que assim
foi resumida pela eminente Dra. LÊDA BOECHAT RODRIGUES (“História do ADPF 187 / DF
8
Supremo Tribunal Federal”, vol. III/204-205, 1991, Civilização
Brasileira):
“A Constituição Federal expressamente preceitua que
a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente
e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para
manter a ordem pública. Em qualquer assunto, é livre a
manifestação do pensamento, por qualquer meio, sem
dependência de censura, respondendo cada um, na forma
legal, pelos danos que cometer. Não se considera
sedição ou ajuntamento ilícito a reunião (pacífica e
sem armas) do povo para exercitar o direito de discutir
e representar sobre os negócios públicos. À Polícia não
assiste, de modo algum, o direito de localizar
‘meetings’ e comícios. Não se concede ‘habeas-corpus’ a
indivíduo não indicado nominalmente no pedido.”
(grifei)
A inquestionável relevância desse julgado, essencial à
compreensão da posição desta Suprema Corte em torno dos direitos
fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento,
revelada sob a égide de nossa primeira Constituição republicana,
impõe que se relembrem, por expressivas, algumas de suas passagens
mais notáveis:
“Efetivamente, depois de assegurar a todos os
indivíduos o direito de se reunirem livremente e sem
armas, o legislador constituinte definiu muito bem, a
respeito, a função preventiva da polícia, verbis ‘não
podendo intervir a polícia senão para manter a ordem
pública’ (art. 72, § 8º).
...................................................
Não pode também a polícia localizar os meetings ou
determinar que só em certos lugares é que eles se podem
efetuar, se forem convocados para fins lícitos, como na
espécie:
1.º) porque isto importaria, afinal, em
suprimi-los, pois bastaria que ela designasse ADPF 187 / DF
9
lugares, ou sem a capacidade necessária à maior
aglomeração de pessoas, ou habitualmente
freqüentados, apenas, por indivíduos de baixa
classe, azevieiros ou frascários;
2.º) porque ninguém pode ser obrigado a deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei
(Const. Fed., art. 72, § 1º.); ora, não há lei
alguma que prescreva que só se efetuem comícios em
lugares previamente fixados pela polícia; e, ao
contrário, o que a lei vigente preceitua é que ‘não
se considera sedição, ou ajuntamento ilícito, a
reunião do povo desarmado, em ordem, para o fim de
representar contra as injustiças, vexações e mal
procedimento dos empregados públicos; nem a reunião
pacífica e sem armas de povo nas praças públicas,
teatros e quaisquer outros edifícios ou lugares
convenientes para exercer o direito de discutir e
representar sobre os negócios públicos. Para o uso
dessa faculdade, não é necessária prévia licença da
autoridade policial que só poderá proibir a reunião
anunciada no caso de suspensão das garantias
constitucionais, limitada em tal caso, na ação de
dissolver a reunião, guardadas as formalidades da
lei e sob as penas nela cominadas’ (Cod. Penal,
art. 123 e parágrafo único).
Ora, não nos achamos com as garantias
constitucionais suspensas.
E, entretanto o sr. Governador da Bahia expediu ao
sr. Presidente da República um telegrama, em que lhe
participa, com a mais cândida ingenuidade e como a coisa
mais natural deste mundo e mais legal, que ‘o seu chefe
de Polícia, dr. Alvaro Cóva, resolveu proibir o meeting
anunciado para hoje, em que devia falar o dr. Guilherme
de Andrade, a favor do Senador Epitácio Pessôa, e também
quaisquer outros que fossem anunciados’ (Jornal do
Comércio, de 27 de março de 1919, a fls.).
...................................................
‘O dr. secretário da Polícia e Segurança Pública,
a bem da ordem, deliberou não consentir na realização
do meeting na Praça Rio Branco, que para hoje
anunciou o sr. dr. Guilherme de Andrade, bem como
qualquer que for convocado, não só para aquele local
como para qualquer outro ponto, que embarace o
trânsito e perturbe a tranqüilidade pública’ (fl.).ADPF 187 / DF
10
E ainda, em resposta às informações ora pedidas
por este Tribunal, o dr. Governador da Bahia,
depois de se referir aos sucessos do dia 25 de
março, na praça Rio Branco, acrescenta que:
‘Secretário Segurança Pública resolveu não
consentir realização comício na referida praça e em
outras em idênticas circunstâncias’ (fl.): é a
prova provada do abuso do poder, da flagrante
ilegalidade do procedimento do chefe de Polícia da
Bahia e, pois, da violência iminente, temida pelo
impetrante, assim, pois;
Considerando que a Constituição Federal
expressamente preceitua que ‘a todos é lícito
associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas,
não podendo intervir a polícia senão para manter a
ordem pública.’ (Art. 72, § 8º);
Considerando que, em qualquer assunto, é livre a
manifestação de pensamento pela imprensa ou pela
tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada
um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma
que a lei determina. (Art. supra citado, § 12).
Considerando que ‘não se considera sedição ou
ajuntamento ilícito a reunião pacífica e sem armas do
povo nas praças públicas, teatros e quaisquer outros
edifícios ou lugares convenientes para exercer o
direito de discutir e representar sobre os negócios
públicos.’ (Cod. Penal, art. 123), exatamente o fim
para que é impetrado o presente ‘habeas corpus’;
Considerando, finalmente, que à polícia não
assiste, de modo algum, o direito de localizar
meetings ou comícios; porque, para o uso dessa
faculdade (a supra transcrita) não é necessária
prévia licença da autoridade policial, que só
poderá proibir a reunião anunciada, no caso de
suspensão das garantias constitucionais, (o que se
não verifica na espécie) e ainda em tal caso,
‘limitada a sua ação a dissolver a reunião,
guardadas as formalidades da lei e sob as penas
nela cominadas’. (Cod. Penal, parágrafo único do
art. 123, supra transcrito).
Acordam, em Supremo Tribunal Federal, nos termos
supra, conceder a presente ordem de ‘habeas corpus’ ao
sr. senador Ruy Barbosa e a todos os indivíduos
mencionados nominalmente na petição de fls. 2 e no
princípio deste Acórdão, para que possam exercer, na ADPF 187 / DF
11
capital do Estado da Bahia e em qualquer parte dele, o
direito de reunião, e mais, publicamente, da palavra
nas praças, ruas, teatros e quaisquer recintos, sem
obstáculos de natureza alguma, e com segurança de suas
vidas e pessoas, realizando os comícios que entenderem
necessários e convenientes à propaganda da candidatura
do impetrante à sucessão do Presidente da República,
sem censura e sem impedimento de qualquer autoridade
local ou da União.” (grifei)
É importante registrar, Senhor Presidente, nas palavras
do saudoso e eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO (“O Supremo Tribunal
Federal, esse outro desconhecido”), o caráter de significativa
relevância que assumiu o julgamento que venho de mencionar, quando
da concessão, por esta Suprema Corte, da ordem de “habeas corpus”
que garantiu, aos cidadãos da República, no contexto histórico das
já referidas eleições de 1919, o pleno exercício das liberdades
fundamentais de reunião e de manifestação do pensamento:
“Dos longes do passado remoto, ligo o Supremo
Tribunal Federal às reminiscências de meus 13 anos de
idade, na Bahia. Minha velha cidade entrara em ebulição
com a campanha presidencial de RUI BARBOSA e de
EPITÁCIO PESSOA, em 1919. Tombaram gravemente feridos à
bala, num comício, MEDEIROS NETTO e SIMÕES FILHO. PEDRO
LAGO escapou, mas sofreu violências outras dos
sicários. As vítimas eram amigos políticos e pessoais
de meu pai e de meu avô. O meu irmão mais velho, ainda
estudante de Direito, trabalhava no jornal
oposicionista, alvo das ameaças policiais. Tudo isso
aqueceu a atmosfera em nossa casa. Aliás, a Bahia tôda
ardia em febre partidária. Para os ruistas, tratava-se
dum apostolado cívico e não duma querela de facções.
Temia-se pela vida do próprio RUI quando viesse a
fim de pronunciar a conferência anunciada para breve.
Suspeitava-se também do govêrno da República, porque
afrontosamente mandara a fôrça federal desagravar aADPF 187 / DF
12
bandeira do edifício dos Correios, sob pretexto de que
recebera ultraje dos partidários do candidato baiano.
Nesse clima eletrizado, caiu como um raio a notícia
de que o Supremo Tribunal Federal concedera a RUI e
seus correligionários ordem de ‘habeas corpus’,
para que se pudessem locomover, e reunir em comício.
Notou-se logo a mudança de atitude da polícia local,
que, murcha, abandonou a atitude de provocação. RUI
desembarcou dum navio e o povo exigiu que o carro fôsse
puxado à mão, ladeiras acima, cêrca de 10 km, até o
bairro da Graça, em meio ao maior delírio da massa, que
já presenciei. Assisti à saudação que lhe dirigiu, em
nome da Bahia, no meio ao trajeto, o velho CARNEIRO
RIBEIRO, de barbas brancas ao vento.
Não se via um soldado, nem um guarda civil nas
ruas. Se um seabrista tentava provocar incidentes, logo
alguém intervinha para ‘não perdermos a razão no
Supremo Tribunal’. A população prêsa da exaltação
partidária mais viva manteve a maior rigorosa ordem,
durante dias sem policiamento, a despeito das expansões
emocionais.
Ouvi, sem perder uma palavra, ao lado de meu pai,
no Politeama baiano, a longa conferência do maior dos
brasileiros, interrompida, de minuto a minuto, por
tempestades de aplausos. Logo, nos primeiros momentos,
Rui entoou um hino ao Supremo Tribunal, que
possibilitara a todos o exercício do direito de reunião
pacífica naquele momento. Rompeu um côro ensurdecedor
de vivas à Côrte egrégia. Foi assim que tomei
consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão
de sentinela das liberdades públicas, vinculando-o a
imagens imperecíveis na minha memória. E também na
minha saudade.” (grifei)
Tais palavras, Senhor Presidente, mostram a reverência
e a veneração que RUY, ALIOMAR BALEEIRO e os defensores da causa da
liberdade sempre dedicaram a esta Suprema Corte, nela reconhecendo o
caráter de uma instituição essencialmente republicana, fiel
depositária do altíssimo mandato constitucional que lhe foi ADPF 187 / DF
13
atribuído pelos Fundadores da República, que confiaram, a este
Tribunal, a condição eminente de guardião da autoridade, de protetor
da intangibilidade e de garante da supremacia da Lei Fundamental.
As decisões que venho de referir, Senhor Presidente –
uma, pronunciada sob a égide da Constituição republicana de 1891
(HC 4.781/BA, Rel. Min. EDMUNDO LINS), e outra, proferida sob a
vigente Constituição promulgada em 1988 (ADI 1.969/DF, Rel. Min.
RICARDO LEWANDOWSKI) -, bem refletem, ainda que as separe um espaço
de tempo de quase um século, o mesmo compromisso desta Suprema Corte
com a preservação da integridade das liberdades fundamentais que
amparam as pessoas contra o arbítrio do Estado.
Na realidade, esses julgamentos revelam o caráter
eminente da liberdade de reunião, destacando-lhe o sentido de
instrumentalidade de que ele se reveste, ao mesmo tempo em que
enfatizam a íntima conexão que existe entre essa liberdade jurídica
e o direito fundamental à livre manifestação do pensamento.
O Supremo Tribunal Federal, em ambos os casos, deixou
claramente consignado que o direito de reunião, enquanto direito-meio,
atua em sua condição de instrumento viabilizador do exercício da
liberdade de expressão, qualificando-se, por isso mesmo, sob talADPF 187 / DF
14
perspectiva, como elemento apto a propiciar a ativa participação da
sociedade civil, mediante exposição de idéias, opiniões, propostas,
críticas e reivindicações, no processo de tomada de decisões em
curso nas instâncias de Governo.
É por isso que esta Suprema Corte sempre teve a nítida
percepção de que há, entre as liberdades clássicas de reunião e de
manifestação do pensamento, de um lado, e o direito de participação
dos cidadãos na vida política do Estado, de outro, um claro vínculo
relacional, de tal modo que passam eles a compor um núcleo complexo
e indissociável de liberdades e de prerrogativas político-jurídicas,
o que significa que o desrespeito ao direito de reunião, por parte
do Estado e de seus agentes, traduz, na concreção desse gesto de
arbítrio, inquestionável transgressão às demais liberdades cujo
exercício possa supor, para realizar-se, a incolumidade do direito
de reunião, tal como sucede quando autoridades públicas impedem que
os cidadãos manifestem, pacificamente, sem armas, em passeatas,
marchas ou encontros realizados em espaços públicos, as suas idéias
e a sua pessoal visão de mundo, para, desse modo, propor soluções,
expressar o seu pensamento, exercer o direito de petição e, mediante
atos de proselitismo, conquistar novos adeptos e seguidores para a
causa que defendem. ADPF 187 / DF
15
A praça pública, desse modo, desde que respeitado o
direito de reunião, passa a ser o espaço, por excelência, do debate,
da persuasão racional, do discurso argumentativo, da transmissão de
idéias, da veiculação de opiniões, enfim, a praça ocupada pelo povo
converte-se naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem
indevidas restrições governamentais.
Não foi por outra razão, Senhor Presidente, que o
eminente Ministro MARCO AURÉLIO, quando do julgamento do pedido de
medida cautelar na ADI 1.969/DF, ao fundamentar a concessão do
provimento liminar, pôs em destaque a indestrutível ligação que
existe entre as liberdades públicas cuja proteção jurisdicional é
requerida, uma vez mais, a esta Suprema Corte:
“(...) o direito de reunião previsto no inciso XVI
está associado umbilicalmente a outro da maior
importância em sociedades que se digam democráticas: o
ligado à manifestação do pensamento.” (grifei)
Idêntica percepção foi revelada, no julgamento final da
ADI 1.969/DF, pelo eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Relator:
“(...) Na verdade, o Decreto distrital 20.098/99
simplesmente inviabiliza a liberdade de reunião e de
manifestação, logo na Capital Federal, em especial na
emblemática Praça dos Três Poderes, ‘local aberto ao
público’, que, na concepção do genial arquiteto que a
esboçou, constitui verdadeiro símbolo de liberdade e
cidadania do povo brasileiro. ADPF 187 / DF
16
Proibir a utilização ‘de carros, aparelhos e
objetos sonoros’, nesse e em outros espaços públicos
que o Decreto vergastado discrimina, inviabilizaria,
por completo, a livre expressão do pensamento nas
reuniões levadas a efeito nesses locais, porque as
tornaria emudecidas, sem qualquer eficácia para os
propósitos pretendidos.” (grifei)
II. O direito fundamental de reunião: estrutura
constitucional e oponibilidade de seu exercício ao Poder Público,
cujos agentes estão sujeitos, em face dessa liberdade de ação
coletiva, à estrita observância de limites e deveres de ordem
jurídica
O direito fundamental de reunião apóia-se, em nosso
sistema de direito constitucional positivo, no inciso XVI do art. 5º
da Constituição da República, que assim o proclama: “todos podem
reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Trata-se de prerrogativa impregnada de caráter
instrumental, qualificando-se, enquanto liberdade de ação coletiva,
como importante meio de consecução e realização dos objetivos que
animam aqueles que se congregam, para um fim específico, em espaços
públicos ou privados. ADPF 187 / DF
17
A estrutura constitucional da liberdade de reunião
autoriza que nela se identifiquem, pelo menos, 05 (cinco) elementos
que lhe compõem o perfil jurídico:
“a) elemento pessoal: pluralidade de participantes
(possuem legitimação ativa ao exercício do direito de
reunião os brasileiros e os estrangeiros aqui residentes);
b) elemento temporal: a reunião é necessariamente
transitória, sendo, portanto, descontínua e não
permanente, podendo efetuar-se de dia ou de noite;
c) elemento intencional: a reunião tem um sentido
teleológico, finalisticamente orientado. Objetiva um fim,
que é comum aos que dela participam;
d) elemento espacial: o direito de reunião se projeta
sobre uma área territorialmente delimitada. A reunião,
conforme o lugar em que se realiza, pode ser pública
(vias, ruas e logradouros públicos) ou interna
(residências particulares, v.g.);
e) elemento formal: a reunião pressupõe organização e
direção, embora precárias.” (grifei)
Qualquer que seja a finalidade que motive o encontro ou
agrupamento de pessoas, não importando se poucas ou muitas, mostra-se
essencial que a reunião, para merecer a proteção constitucional,
seja pacífica, vale dizer, que se realize “sem armas”, sem violência
ou incitação ao ódio ou à discriminação, cumprindo ter presente, quanto
a tal requisito, a advertência de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à
Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo V/604, item n. 10,
2ª ed./2ª tir., 1974, RT), para quem “(...) a polícia não pode
proibir a reunião, ou fazê-la cessar, pelo fato de um ou alguns dos
presentes estarem armados. As medidas policiais são contra os que,
por ato seu, perderem o direito a reunirem-se a outros, e não contra ADPF 187 / DF
18
os que se acham sem armas. Contra esses, as medidas policiais são
contrárias à Constituição e puníveis segundo as leis” (grifei).
A essencialidade dessa liberdade fundamental, que se
exterioriza no direito de qualquer pessoa reunir-se com terceiros,
pacificamente, sem armas, em locais públicos, independentemente de
prévia autorização de órgãos ou agentes do Estado (que não se
confunde com a determinação constitucional de “prévio aviso à
autoridade competente”), revela-se tão significativa que os modelos
político-jurídicos de democracia constitucional sequer admitem que o
Poder Público interfira no exercício do direito de reunião.
Isso significa que o Estado, para respeitar esse
direito fundamental, não pode nem deve inibir o exercício da
liberdade de reunião ou frustrar-lhe os objetivos ou inviabilizar,
com medidas restritivas, a adoção de providências preparatórias e
necessárias à sua realização ou omitir-se no dever de proteger os que
a exercem contra aqueles que a ela se opõem ou, ainda, pretender impor
controle oficial sobre o objeto da própria assembléia, passeata ou
marcha.
É por tal motivo que a liberdade de reunião encontra
veemente repulsa por parte de sistemas autocráticos, que nãoADPF 187 / DF
19
conseguem tolerar a participação popular nos processos decisórios de
Governo nem admitir críticas, protestos ou reivindicações da
sociedade civil.
É de ressaltar que, em nosso sistema normativo, o
direito de reunião pode sofrer, excepcionalmente, restrições de
ordem jurídica em períodos de crise institucional, desde que
utilizados, em caráter extraordinário, os mecanismos constitucionais
de defesa do Estado, como o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I,
“a”) e o estado de sítio (CF, art. 139, IV), que legitimam a
utilização, pelo Presidente da República, dos denominados poderes de
crise, dentre os quais se situa a faculdade de suspender a própria
liberdade de reunião, ainda que exercida em espaços privados.
Em período de normalidade institucional, contudo, essa
liberdade fundamental, além de plenamente oponível ao Estado (que
nela não pode interferir, sob pena de incriminação de seus agentes e
autoridades, consoante prescreve, em norma de tipificação penal, a
Lei nº 1.207, de 25/10/1950), também lhe impõe a obrigação de
viabilizar a reunião, assim como o dever de respeitar o direito –
que assiste aos organizadores e participantes do encontro – à autônoma
deliberação sobre o tipo e o conteúdo da manifestação pública. ADPF 187 / DF
20
É por isso, Senhor Presidente, que se pode identificar,
na cláusula constitucional que ampara a liberdade de reunião (CF,
art. 5º, XVI), tanto um direito (titularizado pelos manifestantes)
quanto uma obrigação (imposta ao Estado), tal como assinala PAULO
GUSTAVO GONET BRANCO (“Curso de Direito Constitucional”, p. 443,
item n. 3.1.4, 4ª ed., 2009, Saraiva/IDP, em co-autoria com Gilmar
Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho):
“O direito de reunião engendra pretensão de
respeito, não somente ao direito de estar com outros
numa mesma coletividade organizada, mas também de
convocar a manifestação, de prepará-la e de organizá-la.
O direito de reunião exige respeito a todo processo
prévio ao evento e de execução da manifestação. O Estado
não há de interferir nesse exercício - tem-se, aqui, o
ângulo de direito a uma abstenção dos Poderes Públicos
(direito negativo).
O direito de reunião possui, de outra parte, um
aspecto de direito a prestação do Estado. O Estado
deve proteger os manifestantes, assegurando os meios
necessários para que o direito à reunião seja fruído
regularmente. Essa proteção deve ser exercida também
em face de grupos opositores ao que se reúne, para
prevenir que perturbem a manifestação.” (grifei)
Vê-se, portanto, que a liberdade de reunião, tal como
delineada pela Constituição, impõe, ao Estado, um claro dever de
abstenção, que, mais do que impossibilidade de sua interferência na
manifestação popular, reclama que os agentes e autoridades
governamentais não estabeleçam nem estipulem exigências que debilitem
ou que esvaziem o movimento, ou, então, que lhe embaracem o exercício. ADPF 187 / DF
21
O Estado, por seus agentes e autoridades, não pode
cercear nem limitar o exercício do direito de reunião, apoiando-se,
para tanto, em fundamentos que revelem oposição governamental ao
conteúdo político, doutrinário ou ideológico do movimento ou, ainda,
invocando, para restringir a manifestação pública, razões fundadas
em mero juízo de oportunidade, de conveniência ou de utilidade.
Disso resulta que a polícia não tem o direito de
intervir nas reuniões pacíficas, lícitas, em que não haja lesão ou
perturbação da ordem pública. Não pode proibi-las ou limitá-las.
Assiste-lhe, apenas, a faculdade de vigiá-las, para, até mesmo,
garantir-lhes a sua própria realização. O que exceder a tais
atribuições, mais do que ilegal, será inconstitucional.
É dever, portanto, dos organismos policiais, longe dos
abusos que têm sido perpetrados pelo aparato estatal repressivo,
adotar medidas de proteção aos participantes da reunião,
resguardando-os das tentativas de desorganizá-la e protegendo-os dos
que a ela se opõem.
Por outro lado, conforme doutrina PONTES DE MIRANDA
(“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, ADPF 187 / DF
22
tomo V/603), “não é dado à polícia analisar ou apreciar a conveniência
da reunião – ‘A polícia não pode intervir sem que haja perturbação da
ordem. Simples inconvenientes não justificam a sua intervenção;
tampouco a probabilidade de produzir o ato ou a reunião conseqüências
disturbantes ou criminosas. Demais, o que lhe cabe resguardar é a
ordem, e não a defesa de determinados direitos privados, ou de
governantes, porque tal missão é apenas da Justiça” (grifei).
III. Liberdade de reunião e direito à livre manifestação
do pensamento: a proteção das minorias e a função contramajoritária da
jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito
O sentido de fundamentalidade de que se reveste essa
liberdade pública permite afirmar que as minorias também
titularizam, sem qualquer exclusão ou limitação, o direito de
reunião, cujo exercício mostra-se essencial à propagação de suas
idéias, de seus pleitos e de suas reivindicações, sendo
completamente irrelevantes, para efeito de sua plena fruição,
quaisquer resistências, por maiores que sejam, que a coletividade
oponha às opiniões manifestadas pelos grupos minoritários, ainda que
desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou
impopulares.
Daí a correta observação feita pelo Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais – IBCCRIM, neste processo, em primorosaADPF 187 / DF
23
sustentação de sua posição a respeito do tema, na qual, ao destacar
“a garantia do dissenso como condição essencial à formação de uma
opinião pública livre”, enfatizou “o caráter contramajoritário dos
direitos fundamentais em causa”:
“A reivindicação por mudança, mediante manifestação
que veicule uma ideia contrária à política de governo,
não elide sua juridicidade. Ao contrário: a
contraposição ao discurso majoritário situa-se,
historicamente, no germe da liberdade da expressão
enquanto comportamento juridicamente garantido. (...).
...................................................
Os direitos fundamentais em causa, vocacionados à
formação de uma opinião pública livre, socorrem
fundamentalmente as minorias políticas, permitindo-lhes
a legítima aspiração de tornarem-se, amanhã, maioria;
esta é a lógica de um sistema democrático no qual o
poder se submete à razão, e não a razão ao poder.
Decerto, inexistiria qualquer razão para que os
direitos de liberdade de expressão, de reunião e de
manifestação fossem alçados a tal condição caso seu
âmbito normativo garantisse, exclusivamente, a
exteriorização de concepções compartilhadas pela ampla
maioria da sociedade ou pela política em vigor. Se para
isso servissem, comporiam uma inimaginável categoria de
‘direitos desnecessários’; não seriam, pois, verdadeiros
direitos.
A proibição do dissenso equivale a impor um
‘mandado de conformidade’, condicionando a sociedade à
informação oficial – uma espécie de ‘marketplace of
ideas’ (OLIVER WENDELL HOLMES) institucionalmente
limitado. Ou, o que é ainda mais profundo: a imposição
de um comportamento obsequioso produz, na sociedade, um
pernicioso efeito dissuasório (‘chilling effect’),
culminando, progressivamente, com a aniquilação do
próprio ato individual de reflexão (...).
A experiência histórica revela, pois, que o
discurso antagônico não requer repressão, mas
tolerância; se não fosse pela óbvia razão de que,
despida de certo grau de tolerância, a convivência se ADPF 187 / DF
24
tornaria socialmente insuportável, justificar-se-ia tal
padrão de conduta pela sempre possível hipótese de que
a ‘verdade’ não esteja do lado da maioria.
...................................................
Perceba-se, nessa linha de perspectiva: um candidato
ou partido político que inclua em sua plataforma ou
programa de governo a descriminalização de uma conduta
delituosa está a fazer ‘apologia ao crime’?
No mesmo tom: seria ilegal uma manifestação pública
tendente a arregimentar apoio à apresentação de um
anteprojeto de lei de iniciativa popular com o objetivo
de propor a descriminalização de determinada conduta? E a
publicação de uma obra literária, individual ou coletiva,
difundindo a mesma opinião? A propósito: a sustentação
teórica do reducionismo penal – que, em termos radicais,
designa-se ‘abolicionismo’ – é prática criminosa?”
(grifei)
Essas reflexões do IBCCRIM, feitas em sua legítima
condição de “amicus curiae”, põem em evidência a função
contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado democrático
de direito, estimulando a análise da proteção das minorias na
perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional.
Na realidade, Senhor Presidente, esse tema acha-se,
intimamente associado ao presente debate constitucional, pois
concerne ao relevantíssimo papel que ao Supremo Tribunal Federal
incumbe desempenhar no plano da jurisdição das liberdades: o de
órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de
proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, até ADPF 187 / DF
25
mesmo, contra abusos perpetrados pelo próprio Poder Público e seus
agentes.
Tal situação culmina por gerar um quadro de submissão
de grupos minoritários à vontade hegemônica da maioria, o que
compromete, gravemente, por reduzi-lo, o próprio coeficiente de
legitimidade democrática das instituições do Estado, pois, ninguém o
ignora, o regime democrático não tolera nem admite a opressão da
minoria por grupos majoritários.
Cabe enfatizar, presentes tais razões, que o Supremo
Tribunal Federal, no desempenho da jurisdição constitucional, tem
proferido, muitas vezes, decisões de caráter nitidamente
contramajoritário, em clara demonstração de que os julgamentos desta
Corte Suprema, quando assim proferidos, objetivam preservar, em
gesto de fiel execução dos mandamentos constitucionais, a
intangibilidade de direitos, interesses e valores que identificam os
grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade
jurídica, social, econômica ou política e que, por efeito de tal
condição, tornam-se objeto de intolerância, de perseguição, de
discriminação, de injusta exclusão, de repressão e de abuso contra
os seus direitos. ADPF 187 / DF
26
Na realidade, o tema da preservação e do reconhecimento
dos direitos das minorias deve compor, por tratar-se de questão
impregnada do mais alto relevo, a agenda desta Corte Suprema,
incumbida, por efeito de sua destinação institucional, de velar pela
supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos,
inclusive de grupos minoritários, que encontram fundamento
legitimador no próprio estatuto constitucional.
Com efeito, a necessidade de assegurar-se, em nosso
sistema jurídico, proteção às minorias e aos grupos vulneráveis
qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena
legitimação material do Estado Democrático de Direito, havendo
merecido tutela efetiva, por parte desta Suprema Corte, quando
grupos majoritários, por exemplo, atuando no âmbito do Congresso
Nacional, ensaiaram medidas arbitrárias destinadas a frustrar o
exercício, por organizações minoritárias, de direitos assegurados
pela ordem constitucional (MS 24.831/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO –
MS 24.849/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 26.441/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.).
Lapidar, sob a perspectiva de uma concepção material de
democracia constitucional, a lúcida advertência do saudoso e ADPF 187 / DF
27
eminente Professor GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias”, “in”
Revista de Informação Legislativa, vol. 96/194):
“A Constituição verdadeiramente democrática há de
garantir todos os direitos das minorias e impedir toda
prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas.
Mais que isso – por mecanismos que assegurem
representação proporcional -, deve atribuir um
relevante papel institucional às correntes minoritárias
mais expressivas.
...................................................
Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude
do postulado constitucional fundamental da igualdade de
todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a
minoria. Esta exerce também função política importante,
decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe
relevante papel no funcionamento das instituições
republicanas.
O principal papel da oposição é o de formular
propostas alternativas às idéias e ações do governo da
maioria que o sustenta. Correlatamente, critica,
fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se,
à opinião pública, como alternativa. Se a maioria
governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob
os princípios da relação de administração.
...................................................
Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio
texto constitucional, de existência, sobrevivência,
liberdade de ação e influência da minoria, para que se
tenha verdadeira república.
...................................................
Pela proteção e resguardo das minorias e sua
necessária participação no processo político, a
república faz da oposição instrumento institucional de
governo.
...................................................
É imperioso que a Constituição não só garanta a
minoria (a oposição), como ainda lhe reconheça direitos
e até funções.
...................................................
Se a maioria souber que – por obstáculo
constitucional – não pode prevalecer-se da força, nemADPF 187 / DF
28
ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a
minoria, então os compromissos passam a ser meios de
convivência política. (...).” (grifei)
Também o eminente e saudoso Professor PINTO FERREIRA
(“Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno”, tomo I/195-
-196, item n. 8, 5ª ed., 1971, RT) demonstra igual percepção do tema
ao enfatizar - com fundamento em irrepreensíveis considerações de
ordem doutrinária - que a essência democrática de qualquer regime de
governo apóia-se na existência de uma imprescindível harmonia entre
a “Majority rule” e os “Minority rights”:
“A verdadeira idéia da democracia corresponde, em
geral, a uma síntese dialética dos princípios da
liberdade, igualdade e dominação da maioria, com a
correlativa proteção às minorias políticas, sem o que
não se compreende a verdadeira democracia
constitucional.
A dominação majoritária em si, como o centro de
gravidade da democracia, exige esse respeito às
minorias políticas vencidas nas eleições. O princípio
majoritário é o pólo positivo da democracia, e encontra
a sua antítese no princípio minoritário, que constitui
o seu pólo negativo, ambos estritamente indispensáveis
na elucidação do conceito da autêntica democracia.
O princípio democrático não é, pois, a tirania do
número, nem a ditadura da opinião pública, nem tampouco
a opressão das minorias, o que seria o mais rude dos
despotismos. A maioria do povo pode decidir o seu
próprio destino, mas com o devido respeito aos direitos
das minorias políticas, acatando nas suas decisões os
princípios invioláveis da liberdade e da igualdade, sob
pena de se aniquilar a própria democracia.
A livre deliberação da maioria não é suficiente
para determinar a natureza da democracia. STUART MILL
já reconhecia essa impossibilidade, ainda no séculoADPF 187 / DF
29
transato: ‘Se toda a humanidade, menos um, fosse de uma
opinião, não estaria a humanidade mais justificada em
reduzir ao silêncio tal pessoa, do que esta, se tivesse
força, em fazer calar o mundo inteiro’. Em termos não
menos positivos, esclarece o sábio inglês, nas suas
‘Considerations on Representative Government’, quando
fala da verdadeira e da falsa democracia (‘of true and
false Democracy’): ‘A falsa democracia é só
representação da maioria, a verdadeira é representação
de todos, inclusive das minorias. A sua peculiar e
verdadeira essência há de ser, destarte, um compromisso
constante entre maioria e minoria.” (grifei)
IV. Grupos majoritários não podem submeter, à hegemonia
de sua vontade, a eficácia de direitos fundamentais, que se revestem
de nítido caráter contramajoritário, especialmente se analisado esse
tema na perspectiva de uma concepção material de democracia
constitucional
O Estado de Direito, concebido e estruturado em bases
democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera
proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma
realidade constitucional densa de significação e plena de
potencialidade concretizadora dos direitos e das liberdades
públicas.
A opção do legislador constituinte pela concepção
democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples
proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito,
por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa
organização política, na esfera das relações institucionais entre os
poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das ADPF 187 / DF
30
liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra:
ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos
princípios superiores consagrados pela Constituição da República,
cujo texto confere, aos direitos fundamentais, um nítido caráter
contramajoritário.
É evidente que o princípio majoritário desempenha
importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito
das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na
perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional,
a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais,
como o livre exercício do direito de reunião e da liberdade de
expressão (e, também, o do direito de petição), sob pena de
descaracterização da própria essência que qualifica o Estado
democrático de direito.
Desse modo, e para que o regime democrático não se
reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual ou
simplesmente formal, torna-se necessário assegurar, às minorias,
notadamente em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a
plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os
direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados. ADPF 187 / DF
31
Isso significa, portanto, numa perspectiva
pluralística, em tudo compatível com os fundamentos estruturantes da
própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que se impõe a
organização de um sistema de efetiva proteção, especialmente no
plano da jurisdição, aos direitos, liberdades e garantias
fundamentais em favor das minorias, quaisquer que sejam, para que
tais prerrogativas essenciais não se convertam em fórmula destituída
de significação, o que subtrairia – consoante adverte a doutrina
(SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, “Fundamentos de Direito Constitucional”,
p. 161/162, item n. 602.73, 2004, Saraiva) – o necessário
coeficiente de legitimidade jurídico-democrática ao regime político
vigente em nosso País.
Daí a inteira procedência da observação feita pela
eminente Dra. DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA, na petição
inicial que subscreveu, com brilhante fundamentação, na condição de
Procuradora-Geral da República:
“Uma idéia fundamental, subjacente à liberdade de
expressão, é a de que o Estado não pode decidir, pelos
indivíduos, o que cada um pode ou não pode ouvir. Como
ressaltou Ronald Dworkin, ‘o Estado insulta os seus
cidadãos e nega a eles responsabilidade moral, quando
decreta que não se pode confiar neles para ouvir
opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções
perigosas ou ofensivas’.
Daí por que o fato de uma idéia ser considerada
errada ou mesmo perniciosa pelas autoridades públicas ADPF 187 / DF
32
de plantão não é fundamento bastante para justificar
que a sua veiculação seja proibida. A liberdade de
expressão não protege apenas as idéias aceitas pela
maioria, mas também – e sobretudo – aquelas tidas como
absurdas e até perigosas. Trata-se, em suma, de um
instituto contramajoritário, que garante o direito
daqueles que defendem posições minoritárias, que
desagradam ao governo ou contrariam os valores
hegemônicos da sociedade, de expressarem suas visões
alternativas.” (grifei)
V. As plurissignificações do art. 287 do Código Penal:
necessidade de interpretar esse preceito legal em harmonia com as
liberdades fundamentais de reunião, de expressão e de petição
Vê-se, portanto, que o litígio constitucional
instaurado na presente causa é motivado por abordagens hermenêuticas
diversas em torno do art. 287 do Código Penal, precisamente em face
do conteúdo polissêmico desse preceito legal, o que é atestado pela
existência de provimentos judiciais conflitantes a propósito da
questão, eis que há decisões que reconhecem que o art. 287 do Código
Penal impede a realização de qualquer marcha ou passeata que
objetive propor a discussão pública sobre a legalização do uso de
drogas ou de substâncias correlatas, frustrando-se, assim, o
exercício de liberdades públicas fundamentais, cuja prática tem sido
duramente atingida e gravemente obstada por notórias medidas
repressivas adotadas pelo Estado e seus agentes em função de
pronunciamentos do Poder Judiciário que consideram apologia de fato ADPF 187 / DF
33
criminoso as condutas daqueles que organizam, promovem e/ou
participam de movimentos como o da “Marcha da Maconha”.
De outro lado, registram-se decisões que, proferidas em
sentido diametralmente oposto, buscam compatibilizar o art. 287 do
Código Penal com o texto da Constituição, interpretando-o de forma a
não inviabilizar o exercício da liberdade de reunião e a prática dos
direitos de petição e de livre manifestação do pensamento.
Tudo isso torna necessário debater e examinar o
significado e o alcance de determinadas liberdades fundamentais – a
liberdade de reunião, a liberdade de manifestação do pensamento e,
também, o direito de petição – cujo exercício tem sido
inviabilizado, pelo Poder Público, sob a equivocada interpretação de
que manifestações públicas (e pacíficas), como a “Marcha da
Maconha”, configurariam a prática do ilícito tipificado no art. 287
do Código Penal, que define, como entidade delituosa, a “apologia de
fato criminoso”, não obstante destinadas, tais manifestações, a
veicular idéias, a transmitir opiniões, a formular protestos e a
expor reivindicações (direito de petição), com a finalidade de
sensibilizar a comunidade e as autoridades governamentais,
notadamente os seus legisladores, para a delicada questão daADPF 187 / DF
34
descriminalização (“abolitio criminis”) do uso das drogas ou de
qualquer substância entorpecente específica.
Extremamente precisa, a esse propósito, a referência
que o IBCCRIM faz, em sua formal intervenção nesta causa, à
delimitação material do objeto da presente demanda constitucional,
especialmente no ponto em que assim se manifesta:
“O objeto desta ADPF não se confunde com o objeto
das reuniões ou manifestações que, sob contínua ameaça
de repressão do Poder Público, justificaram a presente
medida. (...).
A temática jurídica submetida à apreciação desse
Supremo Tribunal Federal situa-se em domínios
normativos superiores, de feição constitucional; mais
precisamente, no âmbito das liberdades individuais:
estão em pauta os direitos fundamentais de reunião e de
manifestação, enquanto projeções da liberdade de
expressão, em cujo núcleo essencial incluem-se as
faculdades de protesto e de reivindicação, pressupostos
de uma sociedade livre, aberta e pluralista.
Nessa perspectiva, as manifestações que, sob
ilegítima expansão normativa dos limites do art. 287 do
Código Penal, vêm sofrendo censura estatal poderiam ter
por conteúdo matérias reivindicatórias as mais diversas
(‘v.g.’, a descriminalização do aborto, da eutanásia ou
de qualquer outra conduta incriminada sobre a qual a
sociedade esteja dividida); ainda assim, o objeto da
ADPF persistiria o mesmo.
É preciso, outrossim, que fique claro: a proteção
judicial ora postulada não contempla – e nem poderia
fazê-lo – a criação de um espaço público
circunstancialmente imune à ação fiscalizatória
ordinária do Estado; menos ainda se propugna que, no
exercício das liberdades ora reivindicadas,
manifestantes possam incorrer em ilicitude de qualquer
espécie, como, por exemplo, consumir drogas. O espectro ADPF 187 / DF
35
de liberdade que se objetiva ver assegurado é aquele
inerente – portanto, adequado e necessário – aos
direitos fundamentais implicados, sem que daí decorra
implícita permissão à prática de conduta que se possa
traduzir em violação às normas integradoras do Direito
em vigor.” (grifei)
É por isso que a douta Procuradoria-Geral da República,
após enfatizar, com apoio em magistério doutrinário, que a liberdade
de reunião acha-se submetida a um limite implícito, que é a sua
finalidade lícita, corretamente observa:
“(...) é perfeitamente lícita a defesa pública da
legalização das drogas, na perspectiva do legítimo
exercício da liberdade de expressão.
Evidentemente, seja ilícita uma reunião em que as
pessoas se encontrassem para consumir drogas ilegais ou
para instigar terceiros a usá-las. Não é este o caso de
reunião voltada à crítica da legalização penal e de
políticas públicas em vigor, em que se defenda a
legalização das drogas em geral, ou de alguma
substância entorpecente em particular.” (grifei)
O direito de reunião, Senhor Presidente, também surge
como verdadeira pré-condição necessária à ativa participação dos
cidadãos no processo político e no de tomada de decisões,
notadamente agora em que o sistema constitucional brasileiro confere
legitimidade ativa aos cidadãos para a instauração, por iniciativa
popular, do processo legislativo, o que habilita o eleitorado a
propor, ao Congresso Nacional, nos termos do art. 14, III, e do
art. 61, § 2º, da Constituição, projetos de lei objetivando, até ADPF 187 / DF
36
mesmo, a própria “abolitio criminis” referente a qualquer conduta
hoje penalmente punível.
Legítimos, pois, sob perspectiva estritamente
constitucional, a assembléia, a reunião, a passeata, a marcha ou
qualquer outro encontro realizados, em espaços públicos, com o
objetivo de obter apoio para eventual proposta de legalização do
uso de drogas, de criticar o modelo penal de repressão e punição
ao uso de substâncias entorpecentes, de propor alterações na
legislação penal pertinente, de formular sugestões concernentes ao
sistema nacional de políticas públicas sobre drogas, de promover
atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos
manifestantes e participantes da reunião, ou, finalmente, de
exercer o direito de petição quanto ao próprio objeto motivador da
assembléia, passeata ou encontro.
VI. Vinculação de caráter instrumental entre a
liberdade de reunião e o direito de petição
Mostra-se relevante salientar, agora, Senhor
Presidente, que igualmente existe uma clara relação de
instrumentalidade entre a liberdade de reunião e o direito de
petição, que também se qualifica como expressiva prerrogativa de ADPF 187 / DF
37
natureza constitucional e de caráter político-jurídico, inerente ao
próprio exercício da cidadania.
Como sabemos, a declaração constitucional de direitos,
inscrita no texto de nossa Lei Fundamental, assegura, a todos, o
direito de petição aos poderes públicos, consagrando, em favor das
pessoas em geral, uma faculdade que tem sido reconhecida ao longo do
constitucionalismo brasileiro, desde a Carta Política do Império do
Brasil (art. 179, n. 30), transitando, sem qualquer exceção, por
todas as Constituições republicanas, até o vigente ordenamento
constitucional (CF/88, art. 5º, inciso XXXIV, “a”), sempre
atribuindo, aos cidadãos e à generalidade das pessoas, a
prerrogativa de apresentar, aos órgãos competentes do Estado,
queixas, reclamações e denúncias de abusos, além de propiciar-lhes a
possibilidade de oferecer representação propondo a adoção de medidas
que materializem a sua posição e o seu pensamento a propósito de
certa matéria ou tema específico, como sucede, p. ex., com os que,
congregando-se, pacificamente, em praça pública, propõem ao Poder
Legislativo (destinatário precípuo da manifestação popular) a adoção
de medidas descriminalizadoras do uso e consumo de drogas em geral e
de determinada substância entorpecente em particular. ADPF 187 / DF
38
Vale ter presente, neste ponto, a observação que PONTES
DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de
1969”, tomo V/630, item n. 3, 2ª ed./2ª tir., 1974, RT) faz sobre o
direito de petição, que surgiu, historicamente, no contexto da
Revolução Gloriosa (1688), com a Declaração de Direitos britânica de
1689 (“Bill of Rights”), que assegurava (como ainda assegura), aos
súditos, o direito de se dirigir ao monarca reinante (e ao Parlamento),
propondo-lhes a adoção de medidas ou de providências indicadas em
pleito individual ou coletivo: “(...) é o direito público subjetivo
de petição, com as pretensões respectivas, qualquer que seja o
interêsse ou direito-base que invoque o peticionário, e independe de
qualquer prova de interêsse próprio. Os podêres públicos são apenas
adstritos a proferir despacho, ou designar comissão que estude as
reclamações feitas. Porém, o Poder Legislativo não pode deixar de
designar comissão ‘ad hoc’, ou permanente, que dê parecer, sujeito,
ou não, a plenário. O arquivamento, sem qualquer resposta, constitui
violação do enunciado da Constituição. A praxe é dar parecer a
Comissão de Petições e enviá-lo, depois, com a petição, às outras
Comissões, a que, pela matéria, interesse. Formou-se a relação
jurídica processual, especialíssima, e o Estado tem o dever de
prestação, em solução favorável ou não” (grifei). ADPF 187 / DF
39
VII. “A Marcha da Maconha”: expressão concreta do
exercício legítimo, porque fundado na Constituição da República,
das liberdades fundamentais de reunião, de manifestação do
pensamento e de petição
É importante destacar, de outro lado, Senhor
Presidente, que, ao contrário do que algumas mentalidades
repressivas sugerem, a denominada “Marcha da Maconha”, longe de
pretender estimular o consumo de drogas ilícitas, busca, na
realidade, expor, de maneira organizada e pacífica, apoiada no
princípio constitucional do pluralismo político (fundamento
estruturante do Estado democrático de direito), as idéias, a
visão, as concepções, as críticas e as propostas daqueles que
participam, como organizadores ou como manifestantes, desse evento
social, amparados pelo exercício concreto dos direitos fundamentais de
reunião, de livre manifestação do pensamento e de petição.
Nesse contexto, a questionada (e tão reprimida)
“Macha da Maconha” é bem a evidência de como se interconexionam as
liberdades constitucionais de reunião (direito-meio) e de
manifestação do pensamento (direito-fim ou, na expressão de Pedro
Lessa, “direito-escopo”), além do direito de petição, todos eles
igualmente merecedores do amparo do Estado, cujas autoridades –
longe de transgredirem tais prerrogativas fundamentais – deveriam
protegê-las, revelando tolerância e respeito por aqueles que, ADPF 187 / DF
40
congregando-se em espaços públicos, pacificamente, sem armas,
apenas pretendem, Senhor Presidente, valendo-se, legitimamente, do
direito à livre expressão de suas idéias e opiniões, transmitir,
mediante concreto exercício do direito de petição, mensagem de
abolicionismo penal quanto à vigente incriminação do uso de drogas
ilícitas.
Cabe rememorar, bem por isso, as observações feitas
pelo ilustre Advogado e Professor SALO DE CARVALHO (“A Política
Criminal de Drogas no Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático da
Lei 11.343/06”, p. 258/261, item n. 12.10, 5ª ed., 2010, Lumen
Juris), que, em precisa exposição, indicou as finalidades
legítimas perseguidas pelos que participam, sob o amparo das
liberdades fundamentais de reunião e de manifestação do
pensamento, dos encontros e eventos promovidos pelos organizadores
de referida manifestação pública:
“Realizada anualmente a partir de 1999 em várias
cidades do planeta, a Marcha da Maconha é caracterizada
por série de eventos de apoio às políticas
antiproibicionistas e de redução de danos. Em
festividades realizadas no primeiro sábado do mês de
maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalização
da ‘Cannabis’, são organizados encontros, passeatas,
fóruns de debates, festas, concertos e festivais.
Idealizada e coordenada por organizações civis e
públicas não-governamentais, a Marcha objetiva
realização de manifestações pacíficas, performances
culturais e atos de livre expressão para informação e ADPF 187 / DF
41
discussão de políticas públicas que envolvem a
(des)criminalização da ‘cannabis’.
Segundo os organizadores, a ideia principal do
evento é a promoção de debate sério sobre as políticas
públicas que envolvem as drogas, sendo os participantes
incentivados a não fazer uso de qualquer tipo de droga,
lícita ou ilícita, especialmente o álcool, durante as
manifestações. Constitui-se, tanto como movimento
social espontâneo, reivindicatório e de livre exposição
do pensamento.
No Brasil, na última década, inúmeros coletivos
aderiram à Marcha, seguindo o movimento global de
manifestação contrária às políticas proibicionistas. A
organização nacional, ao longo dos anos, publicizou
amplamente a intenção de debater o tema da
criminalização e os efeitos produzidos pela atual
política criminal de drogas no Brasil e na América
Latina. No ambiente virtual mantido pelos grupos e
instituições que representam o Movimento, encontra-se a
seguinte exposição de motivos:
‘Os objetivos principais do Coletivo são: Criar
espaços onde indivíduos e instituições interessadas
em debater a questão possam se articular e
dialogar; Estimular reformas nas Leis e Políticas
Públicas sobre a maconha e seus diversos usos;
Ajudar a criar contextos sociais, políticos e
culturais onde todos os cidadãos brasileiros possam
se manifestar de forma livre e democrática a
respeito das políticas e leis sobre drogas; Exigir
formas de elaboração e aplicação dessas políticas e
leis que sejam mais transparente, justas, eficazes
e pragmáticas, respeitando a cidadania e os
Direitos Humanos.
O Coletivo Marcha da Maconha Brasil reafirma
que suas atividades não têm a intenção de fazer
apologia à maconha ou ao seu uso, nem incentivar
qualquer tipo de atividade criminosa. As atividades
do Coletivo respeitam não só o direito à livre
manifestação de ideias e opiniões, mas também os
limites legais desse e de outros direitos.’ ADPF 187 / DF
42
Na Carta de Princípios da Marcha da Maconha no
Brasil, os integrantes expressam os objetivos da
manifestação:
‘A Marcha da Maconha Brasil é um movimento
social, cultural e político, cujo objetivo é
levantar a proibição hoje vigente em nosso país em
relação ao plantio e consumo da ‘cannabis’, tanto
para fins medicinais como recreativos. Também é
nosso entendimento que o potencial econômico dos
produtos feitos de cânhamo deve ser explorado,
especialmente quando isto for adequado sob o ponto
de vista ambiental.
A Marcha da Maconha Brasil não é um movimento
de apologia ou incentivo ao uso de qualquer droga,
o que inclui a ‘cannabis’. No entanto, partilhamos
do entendimento de que a política proibicionista
radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora
maioria dos países do mundo é um completo fracasso,
que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos
públicos desperdiçados.
A Marcha da Maconha Brasil não tem posição
sobre a legalização de qualquer outra substância
além da ‘cannabis’, a favor ou contra. O nosso
objetivo limita-se a promover o debate sobre a
planta em questão e demonstrar para a sociedade
brasileira a inadequação de sua proibição.
A Marcha da Maconha Brasil tem como objetivo
agregar todos aqueles que comunguem dessa visão,
usuários da erva ou não, que desejem colaborar de
alguma forma para que a proibição seja derrubada.
Os que estão presos pelo simples fato de plantar a
‘cannabis’ para uso pessoal são considerados presos
políticos, assim como todos aqueles que estão atrás
das grades sem ter cometido violência nenhuma
contra ninguém, por delitos relacionados a esse
vegetal que o conservadorismo obscurantista teima
em banir.
Para atingir os seus objetivos, a Marcha da
Maconha Brasil atuará estritamente dentro da
Constituição e das leis. Não abrimos mão da liberdade
de expressão, mas também não promovemos a
desobediência a nenhuma lei. Entretanto, reconhecemos
que se a sociedade tem o dever de cumprir a lei
elaborada e aprovada por seus representantes eleitos, ADPF 187 / DF
43
os legisladores devem exercer a sua função em
sintonia com a evolução da sociedade.
Uma vez por ano, simultaneamente com o
movimento internacional ‘Global Marijuana March’, a
Marcha da Maconha Brasil organizará e convocará
manifestações públicas pela legalização da
‘cannabis’. Além disso, também poderão ser
organizadas outras atividades, tais como
seminários, conferências e debates, inclusive em
colaboração com outros grupos e movimentos,
nacionais e estrangeiros.’
Percebe-se, da leitura do material de divulgação,
que a finalidade do movimento é problematizar a
política criminal proibicionista. Trata-se, portanto,
de movimento social espontâneo que reivindica a
possibilidade, através da livre manifestação do
pensamento, da discussão democrática do modelo
proibicionista e dos efeitos que produziu em termos de
incremento da violência. Ademais, o evento Marcha da
Maconha possui, nitidamente, caráter cultural e
artístico, em face da programação de atividades
musicais, teatrais e performáticas, além da criação de
espaço de debate com palestras, seminários e exibições
de documentários relacionados às políticas públicas
ligadas às drogas, lícitas e ilícitas.
Em razão dos dados apresentados, incabível entender
as condutas como apologia de fato criminoso, não apenas
porque houve a descriminalização do tipo específico
existente na revogada Lei 6.368/76, mas porque sequer
há possibilidade de subsunção ao art. 287 do Código
Penal.
Note-se que o bem jurídico tutelado pelo tipo penal
do art. 287 do Código Penal é a paz pública. Assim, a
conduta, para constituir materialmente delito, deve,
necessariamente, gerar, no seio social, perturbação.
Segundo a doutrina, ‘fazer apologia significa defender,
justificar, elogiar, enaltecer, defender. Trata-se da
conduta daquele que, publicamente, enaltece o fato
criminoso ou o autor do crime.’
No caso da Marcha da Maconha, do que se pode
perceber, não há qualquer espécie de enaltecimento,
defesa ou justificativa do porte para consumo ou do
tráfico de drogas ilícitas, figuras tipificadas nos
art. 28 e 33 da Lei 11.343/06. Ao contrário, resta ADPF 187 / DF
44
evidente a tentativa de pautar importante (e
necessário) debate acerca das políticas públicas e dos
efeitos do proibicionismo.” (grifei)
VIII. A liberdade de manifestação do pensamento: um
dos mais preciosos privilégios dos cidadãos
Tenho sempre enfatizado, nesta Corte, Senhor
Presidente, que nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que
a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo
que se objetive, com apoio nesse direito fundamental, expor idéias
ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois,
nesse tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser
livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre.
Torna-se extremamente importante reconhecer, desde logo,
que, sob a égide da vigente Constituição da República, intensificou-se,
em face de seu inquestionável sentido de fundamentalidade, a liberdade
de manifestação do pensamento.
Ninguém desconhece que, no contexto de uma sociedade
fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão
estatal ao pensamento.
Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a
Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer ADPF 187 / DF
45
práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo
exercício da liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de
pensamento.
Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso
da Assembléia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do
pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo
integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como
pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático.
A livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções
não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a
ilícitas interferências do Estado.
Não deixo de reconhecer, Senhor Presidente, que os
valores que informam a ordem democrática, dando-lhe o indispensável
suporte axiológico, revelam-se conflitantes com toda e qualquer
pretensão estatal que vise a nulificar ou a coarctar a hegemonia
essencial de que se revestem, em nosso sistema constitucional, as
liberdades do pensamento.
O regime constitucional vigente no Brasil privilegia,
de modo particularmente expressivo, o quadro em que se desenvolvem
as liberdades do pensamento. Esta é uma realidade normativa, ADPF 187 / DF
46
política e jurídica que não pode ser desconsiderada pelo Supremo
Tribunal Federal.
A liberdade de expressão representa, dentro desse
contexto, uma projeção significativa do direito, que a todos
assiste, de manifestar, sem qualquer possibilidade de intervenção
estatal “a priori”, as suas convicções, expondo as suas idéias e
fazendo veicular as suas mensagens doutrinárias, ainda que
impopulares, contrárias ao pensamento dominante ou representativas
de concepções peculiares a grupos minoritários.
É preciso reconhecer que a vedação dos comportamentos
estatais que afetam tão gravemente a livre expressão e comunicação
de idéias significou um notável avanço nas relações entre a
sociedade civil e o Estado. Nenhum diktat, emanado do Estado, pode
ser aceito ou tolerado, na medida em que venha a comprometer o pleno
exercício da liberdade de expressão.
A Constituição, ao subtrair, da interferência do Poder
Público, o processo de comunicação e de livre expressão das idéias,
ainda que estas sejam rejeitadas por grupos majoritários, mostrou-se
atenta à grave advertência de que o Estado não pode dispor de poder ADPF 187 / DF
47
algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre os modos de sua
manifestação.
Impende advertir, bem por isso, notadamente quando os
agentes do Poder, atuando de forma incompatível com a Constituição,
buscam promover a repressão à liberdade de expressão, vedando o
exercício do direito de reunião e, assim, frustrando, de modo
injusto e arbitrário, a possibilidade de livre exposição de
opiniões, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra,
sobre as idéias, sobre o pensamento e sobre as convicções
manifestadas pelos cidadãos.
Essa garantia básica da liberdade de expressão do
pensamento, como precedentemente assinalado, representa, em seu
próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a
ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será
ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de
natureza filosófica, jurídica, social, ideológica ou confessional,
nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique
restrição à própria manifestação do pensamento. Isso, porque “o
direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem
restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme
adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos ADPF 187 / DF
48
Estados Unidos da América (1937-1971), “o mais precioso privilégio
dos cidadãos...” (“Crença na Constituição”, p. 63, 1970, Forense).
É certo que o direito à livre expressão do pensamento
não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de
natureza ética e de caráter jurídico.
É por tal razão que a incitação ao ódio público contra
qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela
cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.
Cabe relembrar, neste ponto, a própria Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
cujo Art. 13, § 5º, exclui, do âmbito de proteção da liberdade de
manifestação do pensamento, “toda propaganda a favor da guerra, bem
como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à
violência”.
Tenho por irrecusável, Senhor Presidente, que a
liberdade de manifestação do pensamento, impregnada de essencial
transitividade, destina-se a proteger qualquer pessoa cujas
opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções ADPF 187 / DF
49
prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social,
impedindo que incida, sobre ela, por conta e efeito de suas
convicções, qualquer tipo de restrição de índole política ou de
natureza jurídica, pois todos hão de ser livres para exprimir
idéias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em
desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante no
âmbito da coletividade.
Vale relembrar, no ponto, o magistério, sempre valioso,
de CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FABIO
M. DE ALMEIDA DELMANTO (“Código Penal Comentado”, p. 820, 8ª ed.,
2010, Saraiva), cujos comentários, por extremamente relevantes,
reproduzo a seguir, notadamente porque esses eminentes autores
corretamente procedem a uma interpretação do art. 287 do Código
Penal em conformidade com a Constituição e com o que ela estabelece
em tema de liberdades fundamentais:
“Liberdades públicas: Pode ocorrer que a conduta do
agente esteja amparada por garantias constitucionais,
como ocorre com as da liberdade de manifestação do
pensamento (CR, art. 5º, IV) e da livre expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independente de censura ou licença
(inciso IX), havendo um conflito aparente de normas com a
proibição prevista no crime deste art. 287. O que o
Direito Penal pune, evidentemente, são os ‘abusos’ no
exercício dessas liberdades. Dependendo do caso, não
haverá antijuridicidade ou ilicitude na conduta daqueleADPF 187 / DF
50
que, por exemplo, propugna pela descriminalização do
aborto, do porte de droga para uso próprio e da
eutanásia. Isto porque, defender a descriminalização de
certas condutas previstas em lei como crime, não é fazer
apologia de fato criminoso ou de autor de crime.
Igualmente, não configura o crime deste art. 287 a
conduta daquele que usa camiseta com a estampa da folha
da maconha, por ser inócua a caracterizar o crime e por
estar abrangida na garantia constitucional da liberdade
de manifestação do pensamento.” (grifei)
IX. A proposta de legalização do uso de drogas,
inclusive da “Cannabis Sativa Linnaeus”, ainda que defendida fora de
ambientes acadêmicos, em espaços públicos ou privados, é amparada
pelas liberdades constitucionais de reunião, de manifestação do
pensamento e de petição
Desejo salientar, neste ponto, Senhor Presidente, já me
aproximando do encerramento deste voto, que a mera proposta de
descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o
ato de incitação à prática do delito, nem com o de apologia de fato
criminoso, eis que o debate sobre a abolição penal de determinadas
condutas puníveis pode (e deve) ser realizado de forma racional, com
respeito entre interlocutores, ainda que a idéia, para a maioria,
possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante,
inaceitável ou, até mesmo, perigosa.
É relevante destacar que já se registraram, no
ordenamento positivo brasileiro, diversos casos de “abolitio
criminis”, cabendo mencionar, dentre eles, em tempos mais recentes, ADPF 187 / DF
51
a descaracterização típica do adultério (CP, art. 240), da sedução
(CP, art. 217) e do rapto consensual (CP, art. 220).
Impõe-se rememorar, aqui, fato historicamente
expressivo, além de impregnado de inequívoco significado jurídico:
refiro-me a comportamento que era punido, como delito, pelo Código
Penal de 1890, que foi o primeiro estatuto penal da República, cujo
art. 402 definia, como ato passível de repressão penal (pena de 2 a
6 meses de prisão celular), a conduta consistente em “Fazer, nas
ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e destreza corporal
conhecidos pela denominação de capoeiragem (...)”.
Se prevalecesse a lógica autoritária, aqui repudiada,
que extrai, do art. 287 do vigente Código Penal, em interpretação
absolutamente incompatível com o texto da Constituição, a existência
do delito de apologia de fato criminoso, nele enquadrando o
comportamento dos que sustentam, publicamente, a descriminalização
de determinado ato punível, estar-se-ia reconhecendo, em tal
contexto, a possibilidade de incriminação dos que pugnaram pela
legalização da prática da capoeiragem ou que, nesta, vislumbraram
manifestação de caráter folclórico ou de índole cultural, como o
fez, em 1932, em declaração pública, Gustavo Capanema, então
Ministro da Educação e Saúde do Governo Provisório de Getúlio ADPF 187 / DF
52
Vargas, que proclamou, textualmente, que “A capoeira é o esporte
nacional brasileiro”, o que permitiu retirar, nos anos subseqüentes,
das páginas da repressão criminal, a atividade de capoeira, pois,
como se sabe, a capoeira, hoje, acha-se vinculada à Confederação
Brasileira de Capoeira, entidade reconhecida pelo próprio Comitê
Olímpico Brasileiro, sendo digno de nota, ainda, o fato de que a
“Roda de Capoeira” foi qualificada, pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 21/10/2008, como prática
integrante do Patrimônio Cultural do Brasil.
Enfatize-se, Senhor Presidente, que jamais se cogitou,
quanto aos autores de tais propostas – não importando se formuladas
na esfera da sociedade civil ou no âmbito do Congresso Nacional (e
que objetivavam a descriminalização, dentre outros, dos delitos de
capoeiragem, de adultério, de sedução e de rapto consensual) -, que
tivessem eles cometido o delito tipificado no art. 287 do Código
Penal, o que, se ocorrido, constituiria um rematado absurdo...
Há que se reconhecer, ainda, no que se refere à pretendida
descriminalização do uso de drogas, inclusive da maconha, que essa tese é
sustentada, publicamente, por diversas entidades, tais como a Comissão
Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, presidida pelo ex-Presidente
da República Fernando Henrique Cardoso, que, em artigo publicado no ADPF 187 / DF
53
“Valor Econômico” (“A Guerra contra as Drogas”, em 18/01/2011), e
após observar que a guerra contra as drogas “é uma guerra perdida”,
impondo-se, por isso mesmo, uma ruptura de paradigma na análise e
enfrentamento dessa questão, teceu as seguintes observações:
“A guerra contra as drogas é uma guerra perdida e
2011 é o momento para afastar-se da abordagem punitiva
e buscar um novo conjunto de políticas baseado na saúde
pública, direitos humanos e bom senso. Essas foram as
principais conclusões da Comissão Latino-Americana
sobre Drogas e Democracia que organizei, ao lado dos
ex-presidentes Ernesto Zedillo, do México, e César
Gaviria, da Colômbia.
Envolvemos-nos no assunto por um motivo persuasivo:
a violência e a corrupção associadas ao tráfico de
drogas representam uma grande ameaça à democracia em
nossa região. Esse senso de urgência nos levou a
avaliar as atuais políticas e a procurar alternativas
viáveis. A abordagem proibicionista, baseada na
repressão da produção e criminalização do consumo,
claramente, fracassou.
Após 30 anos de esforços maciços, tudo o que o
proibicionismo alcançou foi transferir as áreas de
cultivo e os cartéis de drogas de um país a outro
(conhecido como efeito balão). A América Latina
continua sendo a maior exportadora de cocaína e
maconha. Milhares de jovens continuam a perder as vidas
em guerras de gangues. Os barões das drogas dominam
comunidades inteiras por meio do medo.
Concluímos nosso informe com a defesa de uma mudança de
paradigma. O comércio ilícito de drogas continuará enquanto
houver demanda por drogas. Em vez de aferrar-se a políticas
fracassadas que não reduzem a lucratividade do comércio - e,
portanto, seu poder - precisamos redirecionar nossos
esforços à redução do consumo e contra o dano causado pelas
drogas às pessoas e sociedade.
...................................................
A abordagem recomendada no informe da comissão, no
entanto, não significa complacência. As drogas são
prejudiciais à saúde. Minam a capacidade dos usuários ADPF 187 / DF
54
de tomar decisões. O compartilhamento de agulhas
dissemina o HIV/Aids e outras doenças. O vício pode
levar à ruína financeira e ao abuso doméstico,
especialmente de crianças.
...................................................
Reduzir o consumo ao máximo possível precisa,
portanto, ser o objetivo principal. Isso, contudo, requer
tratar os usuários de drogas como pacientes que precisam
ser cuidados e não como criminosos que devem ser
encarcerados. Vários países empenham-se em políticas que
enfatizam a prevenção e tratamento, em vez da repressão -
e reorientam suas medidas repressivas para combater o
verdadeiro inimigo: o crime organizado.
A cisão no consenso global em torno à abordagem
proibicionista é cada vez maior. Um número crescente de
países na Europa e América Latina se afasta do modelo
puramente repressivo.
Portugal e Suíça são exemplos convincentes do impacto
positivo das políticas centradas na prevenção, tratamento
e redução de danos. Os dois países descriminalizaram a
posse de drogas para uso pessoal. Em vez de registrar-se
uma explosão no consumo de drogas como muitos temiam,
houve aumento no número de pessoas em busca de tratamento
e o uso de drogas em geral caiu.
Quando a abordagem política deixa de ser a de
repressão criminal para ser questão de saúde pública,
os consumidores de drogas ficam mais abertos a buscar
tratamento. A descriminalização do consumo também reduz
o poder dos traficantes de influenciar e controlar o
comportamento dos consumidores.
Em nosso informe, recomendamos avaliar do ponto de
vista da saúde pública - e com base na mais avançada
ciência médica - os méritos de descriminalizar a posse
da cannabis para uso pessoal.
A maconha é de longe a droga mais usada. Há um número
cada vez maior de evidências indicando que seus danos
são, na pior hipótese, similares aos provocados pelo
álcool ou tabaco. Além disso, a maior parte dos problemas
associados ao uso da maconha - desde o encarceramento
indiscriminado dos consumidores até a violência e a
corrupção associadas ao tráfico de drogas - é resultado
das atuais políticas proibicionistas.
A descriminalização da cannabis seria, portanto, um
importante passo à frente para abordar o uso de drogas ADPF 187 / DF
55
como um problema de saúde e não como uma questão para o
sistema de Justiça criminal.
...................................................
Nenhum país concebeu uma solução abrangente ao
problema das drogas. A solução, no entanto, não exige
uma escolha cabal entre a proibição e a legalização. A
pior proibição é a proibição de pensar. Agora, enfim, o
tabu que impedia o debate foi quebrado. Abordagens
alternativas estão sendo testadas e precisam ser
cuidadosamente avaliadas.
No fim das contas, a capacidade das pessoas de
avaliar riscos e fazer escolhas estando informadas será
tão importante para regular o uso das drogas quanto
leis e políticas mais humanas e eficientes. Sim, as
drogas corroem a liberdade das pessoas. É hora, no
entanto, de reconhecer que políticas repressivas em
relação aos usuários de drogas, baseadas, como é o
caso, em preconceito, medo e ideologia, são, da mesma
forma, uma ameaça à liberdade.” (grifei)
Cabe registrar, finalmente, que a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, instituição vinculada à
Organização dos Estados Americanos, por sua Relatoria Especial para
a Liberdade de Expressão, já manifestou grave preocupação, externada
no Informe Anual de 2008, motivada pela existência de decisões
judiciais que proibiram, em maio daquele ano, no Brasil, a realização
de manifestações públicas que buscavam propor modificações na
legislação penal em vigor, assim havendo se pronunciado a respeito,
como registra a douta Procuradoria-Geral da República (fls. 05/06):
“50. O Escritório do Relator Especial recebeu
informação a propósito da adoção de medidas judiciais
em maio de 2008 em nove cidades brasileiras diferentes
proibindo a realização de demonstrações públicas que ADPF 187 / DF
56
visavam a promover modificações no Direito Penal em
vigor. Estas decisões foram justificadas por
autoridades judiciais com base no argumento de que elas
(as demonstrações públicas) constituiriam supostamente
apologia ou instigamento de atividade criminal. O
Escritório do Relator Especial recorda que, exceto no
caso de formas de expressão que, nos termos do
artigo 13 (5) da Convenção Americana, claramente
constituam ‘propaganda de guerra’ ou ‘apologia ao ódio
nacional, racial ou religioso que constitua incitamento
à violência ilegal ou a qualquer outra ação similar
contra qualquer pessoa ou grupo, por qualquer motivo’,
marchas de cidadãos pacíficos em áreas públicas são
demonstrações protegidas pelo direito à liberdade de
expressão.” (grifei)
X. Conclusão:
Em suma, Senhor Presidente: a liberdade de expressão,
considerada em seu mais abrangente significado, traduz, ela própria,
o fundamento que nos permite formular idéias e transmiti-las com o
intuito de provocar a reflexão em torno de temas que podem revelar-se
impregnados de elevado interesse social.
As idéias, Senhor Presidente, podem ser fecundas,
libertadoras, subversivas ou transformadoras, provocando mudanças,
superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos
nas formações sociais. ADPF 187 / DF
57
É por isso que se impõe construir espaços de liberdade,
em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas
instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento
não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as
idéias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de
plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes,
legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo
argumentativo do discurso fundado em convicções divergentes, a
concretização de um dos valores essenciais à configuração do Estado
democrático de direito: o respeito ao pluralismo político.
A livre circulação de idéias, portanto, representa um
signo inerente às formações democráticas que convivem com a
diversidade, vale dizer, com pensamentos antagônicos que se
contrapõem, em permanente movimento dialético, a padrões, convicções
e opiniões que exprimem, em dado momento histórico-cultural, o
“mainstream”, ou seja, a corrente dominante em determinada sociedade.
É por isso que a defesa, em espaços públicos, da
legalização das drogas, longe de significar um ilícito penal,
supostamente caracterizador do delito de apologia de fato criminoso,
representa, na realidade, a prática legítima do direito à livre
manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de ADPF 187 / DF
58
reunião, sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de
tais prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social
da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e
consideração da própria coletividade.
Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas e
garantindo a todas as pessoas o exercício dos direitos fundamentais
de reunião e de livre manifestação do pensamento, tais como
assegurados pela Constituição da República, julgo procedente a
presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, para
dar, ao art. 287 do Código Penal, interpretação conforme à
Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a
criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer
substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações
e eventos públicos” (fls. 14 - grifei).
É o meu voto.
segunda-feira, 11 de março de 2013
DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DA MACONHA EM 2013
Em 27 de fevereiro de 2013, a Rádio Band News FM trouxe uma grande notícia para os ativistas pela legalização da maconha. A jornalista Mônica Bergamo informou que conversou com alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal e os juízes mais importantes do Brasil lhe disseram que o Recurso Extraordinário 635659 deve entrar em pauta ainda nesse semestre. Segundo a reportagem, a tendência da Suprema Corte é descriminalizar o consumo de maconha e outras substâncias tornadas ilícitas. O maconheiro deixará de ser criminoso.
A Marcha da Maconha foi determinante para os avanços libertários apontados. E, como a maconha é a substância proibida consumida por 80% das pessoas, sua legalização representa o início do enfraquecimento desse mercado do capitalismo mafioso, sócio do capitalismo financeiro oficial. O RE 635659, que já foi considerado de repercussão geral pelo Plenário Virtual do STF, pode gerar uma súmula vinculante, que terá de ser acompanhada pelos tribunais e autoridades judiciais e administrativas de todo o país. Trata-se de recurso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo para que o consumidor de maconha não seja mais considerado criminoso.
Mas não podemos apenas esperar acontecer, temos de fazer acontecer. As Marchas da Maconha em várias cidades brasileiras já estão sendo organizadas. Esses eventos podem levar uma faixa bem à frente da passeata com os seguintes dizeres: “STF, julgue a nossa causa: RE 635659”. Antes da Suprema Corte declarar a constitucionalidade da Marcha da Maconha, abrimos em várias Marchas uma grande faixa preta com os seguintes dizeres, em branco: “STF julgue a nossa causa: ADPF 147”. Essa faixa teve muita importância no julgamento favorável à Marcha da Maconha pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 147.
Como a criminalização da Marcha é inconstitucional, o consumo da maconha também é, pois fumar a erva da paz não lesiona terceira pessoa, violando assim o princípio da lesividade, segundo o qual a criminalização de uma conduta está vinculada à ofensa de um bem jurídico relevante. A proibição fere também os princípios da intimidade, da vida privada, da igualdade na diversidade, da autodeterminação e da liberdade de escolha, pois o Estado não tem que se meter na vida das pessoas, direitos humanos de primeira geração, pois assim estará ferindo princípios garantidores da tutela da liberdade.
Este ano é nosso, vamos descriminalizar o consumo da maconha e avançar na licitude da plantação para uso próprio e de cooperativas de consumo, bem como apontar para a legalização da produção, industrialização, distribuição e comercialização. Se a maconha foi criminalizada no século XX, vamos libertá-la no XXI. E avisar a todos que apoiam a criminalização do consumo e da plantação de maconha para uso próprio que esses estão, na realidade, defendendo o tráfico de drogas. Pois essa política interessa apenas àqueles que detêm o monopólio da venda de maconha por sua ilegalidade e não querem ver as pessoas plantando sua própria erva.
ANDRÉ BARROS, advogado da Marcha da Maconha
Rio de Janeiro, 6 de março de 2013
Assinar:
Postagens (Atom)