André Barros, 51 anos, carioca, mestre em ciências penais, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e advogado da Marcha da Maconha. Entrou na Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ em 1989, onde foi delegado, membro, Secretário-Geral e atualmente Vice-Presidente.
sexta-feira, 5 de abril de 2013
PARECER IAB PL INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA 7663/2010
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
Ref. Lei nº 7.663, de 2010, e de seus apensos, PLs nos 7.665/10, 440/2011; 1.144/2011, 1.575/2011, 1.693/2011, 1.905/2011, 1.931/2011, 2.372/2011, 2.600/2011, 2.922/2011, 2.930/2011, 3.167/2012, 3.365/2012, 3.450/2012, nos termos do Substitutivo.
Consócio Fernando Maximo de Almeida Pizarro Drummond
Matéria:
Lei 11343/2006 refente a drogas ilícitas
André Magalhães Barros
Ementa: Indicação do consócio Fernando Máximo de Almeida Pizarro Drumond referente ao Projeto de Lei 7663/2010 de autoria do Deputado Osmar Terra, que, ao contrário da tendência mundial e dos paradigmas atuais da ciência, aumenta a pena mínima do tráfico de drogas ilícitas, generaliza a internação involuntária de dependentes de drogas tornadas ilícitas e mantém a criminalização de seu consumo.
Trata-se de proposta de legislação de exceção incompatível com o Estado Democrático de Direito. A denominação do capítulo IV do projeto de lei é emblemática: "Do Sistema Nacional de Informação Sobre Drogas". A proposta vem ressuscitar e, ainda por cima, com o mesmo nome, o espírito do SNI. Isto justamente no momento em que a Comissão da Verdade luta para contar a história recente do país e as atrocidades cometidas durante a ditatura militar. Na proposta, é instituído um aparato de fiscalização, cadastro e controle dos usuário de drogas para o país. Através de uma rede nacional, centralizada hierarquicamente e coordenada pela União, objetiva-se criar sistemas estaduais e municipais integrados, sob a fiscalização de um poder central, ferindo a autonomia dos entes federados. À União compete elaborar o Plano Nacional de Políticas Sobre Drogas, instituindo e mantendo um Sistema Nacional de Informação, com prestação de assistência técnica e suplementação financeira aos Estados, Distrito Federal e aos Municiípios. Cabe destacar o parágrafo único do artigo 16 do capítulo IV:
“CAPÍTULO IV
Do Sistema Nacional de Informação Sobre Drogas
Art 16. ........
...........................................
Parágrafo único
. As instituições de ensino deverão fazer o preenchimento da ficha de notificação, suspeita ou confirmação de uso e dependência de drogas e substâncias psicoativas ilegais para fins de registro, estudo de caso e adoção de medidas legais. (NR)”
Como se não bastasse um sistema centralizado na União, suas diretrizes políticas, determinações e métodos já estão traçados no projeto de lei. Cabe destacar que seu artigo 8º obriga os órgãos educacionais a se transformarem em pequenos tribunais de exceção, e seus agentes, em informantes deste novo SNI:
“SEÇÃO V
Das Diretrizes quanto à Educação
Art 8º - K É obrigatório que os agentes públicos ou privados observem as seguintes diretrizes na elaboração e na execução dos planos de políticas sobre drogas na educação:
I – promover que os regimentos escolares e os regimentos internos das entidades de atendimento definam as ações preventivas, as medidas disciplinares e as responsabilidades dos que atuarem de forma direta ou indireta, por ação ou omissão na ocorrência de uso e dependência de drogas;
II – habilitar os professores a identificarem os indicadores relativos à ingestão abusiva de álcool e à dependência de drogas e dar o devido encaminhamento nos casos previstos”
Na base desse aparato de informação e controle, é importante registrar a obrigatória parceria com instituições religiosas, estabelecida no artigo 8º-J, inciso IV, que claramente afronta o artigo 19, I, da Constituição Federal:
“Art 8º-J - É obrigatório que os agentes públicos ou privados observem as seguintes diretrizes na elaboração e na execução dos planos de políticas sobre drogas na atenção à saúde do usuário ou dependente de drogas:
…...............................
IV – fomentar as parcerias com instituições religiosas, associações e organizações não-governamentais na abordagem das questões do abuso de drogas;
…...............................”
A proposta prevê, ainda, a criação de Conselhos Nacional, Estadual e Distrital e Municipais formados por, respectivamente, 20, 16 (estaduais e distrital) e 10 membros. Todos serão remunerados e constará da respectiva lei orçamentária a previsão dos recursos necessários ao pleno funcionamento do Conselho, tudo previsto no artigo 8º-I.
O capítulo IV estabelece que o desrespeito, mesmo que parcial, e o não cumprimeto integral das diretrizes e determinações do projeto, sujeitam, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal, bem como da Lei de Improbidade Administrativa, os gestores, operadores e entidades governamentais, ou não, à advertência, afastamento de dirigentes, fechamento de unidade, interdição de programas, suspensão e cassação de funcionamento.
Justificados pelo discurso do medo e do perigo da guerra, os métodos de delação, informação, provas secretas e punição, em sistema centralizado na União, eram políticas de Estado da ditadura militar aplicados contra os “subversivos”. Esse projeto de lei possui as mesmas características, voltadas contra os estigmatizados “drogados”.
A substituição do título II da Lei 11343/2006 “Do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas” pelo “Da Articulação Federativa para o Enfrentamento às Drogas, da Rede e do Sistema Nacionais de Políticas sobre Drogas” demonstra claramente seu novo método: o “enfrentamento”.
No caso em tela, o conceito de enfrentamento remete à política da “guerra às drogas”, cujo evidente fracasso o Rio de Janeiro vem testemunhando, ao situar-se entre as cidades do mundo onde mais morrem jovens, negros e pobres por arma de fogo. Como diz o próprio nome, essa política busca transformar uma questão pertencente à esfera da saúde pública em guerra ou, em outras palavras, articulação federativa de enfrentamento aos estigmatizados “drogados”.
Segundo o projeto de lei, o único tratamento oferecido pela internação é a “abstinência”. Entretanto, em documentos públicos, a própria Prefeitura do Rio de Janeiro já admite a ineficácia desse tratamento em mais de 70% dos casos. Assim, vão de encontro às eficazes políticas de redução de danos adotadas tanto pelo nosso Ministério da Saúde quanto por diversos países do mundo.
Cabe destacar que parecer do Ministério da Saúde considerou a compreensão do projeto em tela a respeito do problema das drogas equivocada. Recordamos que a Lei 10.216/01 (conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira) dispõe sobre a “proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental no país”. Fruto de amplo debate na sociedade e da luta antimanicomial, esta lei foi considerada um avanço, à medida que deixou de preconizar o modelo asilar, por este ser violador de direitos humanos e ineficaz sob o ponto de vista clínico, para constituir, ao contrário, um modelo de promoção da cidadania e autonomia do usuário, com resultados significativos para a saúde (Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras drogas DAPES/SAS/MS). Há algumas décadas, no Brasil e no mundo, a cultura da violência institucional gratuita e desumana apresentada como tratamento veio sendo desmascarada e deslegitimada. No entanto, ainda se faz necessário resistir aos retrocessos e promover ações para desmontar as práticas de exclusão voltadas para grupos sociais marginalizados – dependentes de drogas, idosos, negros, imigrantes, ciganos, jovens e desempregados (Amarante, P. Saúde Mental, Formação e Crítica. 2008).
O artigo 28 da Lei 11343/2006, que significou um grande avanço, com o fim da pena privativa de liberdade para os consumidores de drogas, está ameaçado de sofrer grave retrocesso. Exatamente agora que se aproxima o julgamento do Recurso Extraordinário 635659, onde o Supremo Tribunal Federal deve acompanhar decisões de demais Cortes Constitucionais da América do Sul e julgar inconstitucional a criminalização do próprio artigo 28 da Lei 11343/2006. O STF já decidiu, ao final de 2011, em Plenário Virtual, que existe repercussão geral da questão constitucional suscitada no RE 635659, pois atinge grande número de interessados e o tema é de manifesta relevância social e jurídica. O referido projeto, ao contrário, visa criar uma espécie de prisão domiciliar para os estigmatizados "drogados" e lhes proibir a diversão por até 24 meses. Invade o poder discricionário do juiz sentenciante em dispositivos teratológicos, ao determina o que deve constar na sentença judicial, chegando ao ponto de atribuir ao juiz a tarefa, impossível, de acompanhar o atendimento individualizado dos usuários de droga:
“Art. 28........................................................
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo de 6 (seis) a 12 (doze) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro) meses.
..........................................................................................
§ 6º
........................................................
III – restrição de direitos relativos à frequência a determinados lugares ou imposição ao cumprimento de horários.
....................................................................................
§ 8º Em qualquer das hipóteses previstas nos incisos do caput deste artigo, o Poder Público está obrigado a acompanhar o desenvolvimento, registrar o cumprimento e avaliar o progresso do usuário ou dependente de drogas nas atividades atribuídas,de
acordo com o seguinte:
I –a sentença judicial designará um responsável por acompanhar o desenvolvimento das atividades pelo usuário ou dependente de drogas;
II –o juiz competente será informado pelo responsável pelo plano de atendimento individual acerca da avaliação do progresso realizado no cumprimento das atividades do programa, com sugestões sobre ações futuras.”(NR)
Um dos aspectos mais terríveis do projeto é a internação involuntária, assim definida no artigo 23-A, inciso II, letra “b”:
“Art. 23-A ….................................
…................................................
II - …..........................................
b) internação involuntária: aquela que se dá, sem o consentimento do usuário,a pedido de familiar ou, na absoluta falta deste, de servidor público que constate a existência de motivos que justifiquem a medida;
….................................................
§ 2º A internação involuntária:
I –a internação involuntária deve ser precedida da elaboração de documento que formalize a solicitação do familiar ou, na absoluta falta deste,de servidor público e deve conter a exposição dos motivos que a justifica.
II–é realizada após a formalização da decisão do médico responsável;
III–perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação, dentro do período máximo de 180(cento e oitenta) dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável;
IV –o solicitante da internaçãopode requerer ao médico a interrupção do tratamento.”
Trata-se, na realidade, de internação compulsória, criando o projeto uma nova espécie da extrema medida de segurança de internação. No entanto, esta medida será decidida por apenas um médico, que não precisa ser perito judicial e nem mesmo psiquiatra. Hoje, num processo judicial comum, para ser aplicada medida de segurança, é necessário um Laudo de Exame de Sanidade Mental, com quesitos da acusação e da defesa, assinado por dois peritos psiquiatras. Medida esta que só pode ser aplicada para alguém que tenha praticado um crime com pena privativa de liberdade. Ocorre que não existe mais a pena privativa de liberdade para o crime de consumo de drogas no artigo 28 da Lei 11343/2006, nem tampouco no projeto em tela. Deste modo, é ferida a mais importante garantia individual, o princípio da reserva legal, insculpido nos artigos 5, XXXIX, da Constituição Federal e 1º do Código Penal. Para uma pessoa sofrer medida de segurança, primeiro deve ser analisado se ela praticou um fato típico, ilícito, culpável, excluindo neste momento da análise a inimputabilidade, e punível. Como não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, ninguém pode ser internado compulsoriamente por conduta onde não é mais prevista a pena privativa de liberdade.
Por fim, a teratologia do projeto de lei chegou ao extremo na questão da sanção por tráfico de drogas. A vedação à conversão das penas privativa de liberdade em restritivas de direitos no caso de tráfico de drogas foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão definitiva no Habeas Corpus nº 97256/RS. Logo, tal proibição foi riscada do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11343/2006 pelo Senado Federal, através da Resolução nº 5, de 2012. Portanto, um réu primário, de bons antecedentes, que não se dedica a atividades criminosas nem integra organização criminosa, pode ter sua pena reduzida de um sexto a dois terços. Já que a pena mínima para o tráfico é de 5 anos, neste caso, o juiz deve aplicar a causa de diminuição e a pena, que não ultrapassará 4 anos, será convertida em restritiva de direitos. Observa-se que o projeto aumenta a pena mínima visando cortar esses avanços e amordaçar o juiz sentenciante. Quer impedir, no caso concreto, que o juiz se movimente com discricionariedade no momento da dosimetria da pena e substitua a pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.
A irracionalidade da proposta é tamanha que estabelece uma pena mínima de 8 anos para o tráfico, superior à pena mínima de 6 anos para homicídio doloso. A principal razão da superlotação das cadeias brasileiras reside na prisão de pequenos e ocasionais traficantes, bem como de consumidores condenados como traficantes. Isto, mesmo com a pena mínima vigente de 5 anos de reclusão. Chega a ser difícil imaginar uma superlotação ainda maior caso a pena mínima fosse de 8 anos! O projeto em tela é uma catástrofe anunciada das nossas já desumanas penitenciárias.
Desta forma, o projeto de lei nº 7.663, de 2010, seus apensos, PLs nos 7.665/10, 440/2011; 1.144/2011, 1.575/2011, 1.693/2011, 1.905/2011, 1.931/2011, 2.372/2011, 2.600/2011, 2.922/2011, 2.930/2011, 3.167/2012, 3.365/2012, 3.450/2012, e Substitutivo, devem ser rejeitados por absoluta inconstitucionalidade e incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito.
Rio de Janeiro, 1 de abril de 2013
ANDRÉ MAGALHÃES BARROS