quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A PSIQUIATRIA BRASILEIRA E A CRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA

Em meados do século XIX, a psiquiatria lombrosiana chegou ao Brasil. Com o discurso pseudo científico do “criminoso nato”, a teoria afirmava que determinadas raças carregavam características naturais dos criminosos. Esse discurso criminalizou os negros, sua religião, sua cultura e o hábito de fumar maconha.
O consumo de maconha seria uma característica de criminosos que, sob seu efeito, praticavam condutas penais. Esse discurso avançou e caiu como uma luva com a abolição da escravatura em 1888. A liberdade passou a ser controlada pelo discurso do medo do criminoso nato, de maneira que antigos escravos e seus descendentes foram criminalizados. Em 1890, o governo republicano criou na polícia a Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação.
Esses psiquiatras brasileiros lombrosianos fizeram uma série de teses falsamente científicas criminalizando negros, nativos, mulheres, capoeiristas, sambistas, maconheiros, prostitutas, macumbeiros, cachaceiros, explorando certo tipo de discurso e linguagem e estigmatizando todos que não fossem supostamente brancos “puros”: era o embrião do discurso fascista e nazista da superioridade de raças.

A maconha foi acusada de ser o instrumento de vingança dos negros contra os brancos pela escravidão. Vale destacar o discurso do Dr. Pernambuco, delegado brasileiro, na II Conferência Internacional do Ópio, em 1924 em Genebra, em que o psiquiatra afirmou, para as delegações de 45 outros países: “a maconha é mais perigosa que o ópio”. Essa Conferência influenciou a criminalização da maconha em todo o mundo.

Filinto Muller, influente chefe da polícia política de Getúlio Vargas, declarou que a Umbanda não fazia mal a ninguém, mas invadia e quebrava todos os terreiros que insistiam no uso da maconha. Como a Umbanda queria ser reconhecida como religião e estava se estruturando, subtraiu o uso da maconha de suas práticas para obter esse reconhecimento. Teria sido aí o embranquecimento da Umbanda.

Até a próxima quarta-feira, às 4:20 horas, um abraço bem apertado!

11/10/2011
ANDRÉ BARROS

A NOVA LEI E A USP

Inicialmente, cabe destacar esses três parágrafos do artigo 48 da Lei 11343/2006, que consiste na atual legislação sobre drogas em vigor no Brasil:

“Art. 48.........
§ 2o Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
§ 3o Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2o deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.
§ 4o Concluídos os procedimentos de que trata o § 2o deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado.”
Para entender bem o artigo citado, é importante saber que a conduta prevista no artigo 28, como trata o parágrafo 2º, é a do consumidor ou de quem planta pequena quantidade para uso próprio.
Se a Lei 11343/2006 fosse aplicada, o episódio da USP poderia ter tido outro desfecho. Mesmo assim, seria lamentável que uma universidade tão importante precisasse da polícia militar para reprimir seu enorme número de estudantes que fumam maconha, como em qualquer universidade do Brasil, principalmente nas melhores, as públicas. A maconha faz parte da cultura universitária em todos os locais do mundo. De qualquer forma, o espírito da lei é evitar as práticas de extorsão envolvendo consumidores. É nítido nesses parágrafos que a lei busca retirar da esfera policial e prioriza levar o consumidor ou plantador de pequena quantidade à autoridade judicial. Se ausente o Juiz, a autoridade policial deve tomar de imediato as providências do parágrafo 2º, vedada a detenção e a prisão em flagrante, em seguida liberando o agente.
Infelizmente, os tribunais ainda não se prepararam para aplicar a nova lei e a polícia continua agindo como se a lei não priorizasse o Judiciário para resolver, imediatamente, estas questões, pois não quer perder poder, na concorrência entre as agências do sistema penal.
Portanto, no caso da USP, os estudantes deveriam, simplesmente, ter sido levados ao juízo competente que, em São Paulo, possui, inclusive, plantão, para, em seguida, após a tomada das providências, serem liberados.
15/11/2011

ANDRÉ BARROS

SUPREMO DECLARA INCONSTITUCIONAL IMPEDIR A SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO PELA RESTRITIVA DE DIREITOS NO TRÁFICO DE DROGA

Observe a preocupação do legislador em vedar ao condenado por tráfico de drogas a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, nos artigos 33, §4º, e 44 da Lei 11343/2006, destacados em negrito:
“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”
Esta preocupação existe devido ao artigo 44 do Código Penal estabelecer que as penas restritivas de direitos podem substituir as privativas de liberdade, quando a pena não for superior a quatro anos:
“Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso;
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.”
Porém, como na Lei 11343/2006 existe uma causa de diminuição de pena de um sexto a dois terços, no § 4º do artigo 33, a pena mínima de 5 anos para o tráfico pode chegar a 1 ano e 8 meses, cabendo assim a conversão da pena de prisão pela restritiva de direito, nos casos em que a pena não ultrapasse a quatro anos, como estabelece o artigo 44 do Código Penal.
Portanto, a preocupação do legislador foi proibir o Juiz de substituir a privação da liberdade pela restrição de direitos a um condenado por tráfico de drogas, tratando-se de uma verdadeira ingerência do poder legislativo sobre o poder judiciário, a fim de impedir o juiz sentenciante de se movimentar com ineliminável discricionariedade.
Enquanto o senso comum pensa que estão presos perigosos traficantes, as cadeias brasileiras estão superlotadas de réus primários, de bons antecedentes, que não se dedicam às atividades criminosas nem integram organização criminosa, que praticaram desarmados o tráfico de pouquíssima quantidade, sem violência nem grave ameaça à pessoa. Nas cadeias, estão presos por tráfico, em quase sua totalidade, jovens, pobres e negros, vendedores de “mutucas”.
Para dar fim a esta hipocrisia e esvaziar as superlotadas masmorras brasileiras, essa vedação deve ser revogada. O STF já se posicionou. Ao julgar o HC 97.256/RS no dia 1º de setembro de 2010, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade nos crimes de tráfico de drogas da vedação contida nos art. 33, § 4º, e 44 da Lei 11.343/06, não admitindo que seja subtraído do julgador a possibilidade de promover a substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos para o tráfico de drogas, quando presentes os requisitos inseridos no art. 44 do Código Penal.
23/11/2011
ANDRÉ BARROS

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nota pública de pesquisadores da Universidade de São Paulo sobre a crise da USP

Nós, pesquisadores da Universidade de São Paulo auto-organizados, viemos, por meio desta nota, divulgar o nosso posicionamento frente à recente crise da USP.

No dia 08 de novembro de 2011, vários grupamentos da polícia militar realizaram uma incursão violenta na Universidade de São Paulo, atendendo ao pedido de reintegração de posse requisitado pela reitoria e deferido pela Justiça. Durante essa ação, a moradia estudantil (CRUSP) foi sitiada com o uso de gás lacrimogêneo e um enorme aparato policial. Paralelamente, as tropas da polícia levaram a cabo a desocupação do prédio da reitoria, impedindo que a imprensa acompanhasse os momentos decisivos da operação. Por fim, 73 estudantes foram presos, colocados nos ônibus da polícia, e encaminhados para o 91º DP, onde permaneceram retidos nos veículos, em condições precárias, por várias horas.

Ao contrário do que temsido propagandeado pela grande mídia, a crise da USP, que culminou com essabrutal ocupação militar, não tem relação direta com a defesa ou proibição do uso de drogas no campus. Na verdade, o que está em jogo é a incapacidade das autoritárias estruturas de poder da universidade de admitir conflitos e permitir a efetiva participação da comunidade acadêmica nas decisões fundamentais da instituição. Essas estruturas revelam a permanência na USP de dispositivos de poder forjados pela ditadura militar, entre os quais: a inexistência de eleições representativas para Reitor, a ingerência do Governo estadual nesse processo de escolha e a não-revogação do anacrônico regimento disciplinar de 1972.

Valendo-se desta estrutura, o atual reitor, não por acaso laureado pela ditadura militar, João GrandinoRodas, nos diversos cargos que ocupou, tem adotado medidas violentas: processos administrativos contra estudantes e funcionários, revistas policiais infundadas e recorrentes nos corredores das unidades e centros acadêmicos, vigilância sobre participantes de manifestações e intimidação generalizada.

Este problema não é um privilégio da USP. Tirando proveito do sentimento geral de insegurança, cuidadosamente manipulado, o Governo do Estado cerceia direitos civis fundamentais de toda sociedade. Para tanto, vale-se da polícia militar, ela própria uma instituição incompatível com o Estado Democrático de Direito, como instrumento de repressão a movimentossociais, aos moradores da periferia, às ocupações de moradias, aos trabalhadores informais, entre outros. Por tudo isso, nós, pesquisadores daUniversidade de São Paulo, alunos de pós-graduação, mestres e doutores, repudiamos o fato de que a polícia militar ocupe, ou melhor, invada os espaços da política, na Universidade e na sociedade como um todo.



Fábio Luis Ferreira Nóbrega Franco – Mestrando da Filosofia-USP
Henrique Pereira Monteiro – Doutorando em Filosofia-USP
Patrícia Magalhães – Doutoranda em Física - USP
Silvia Viana Rodrigues - Doutora em Sociologia-USP
Bianca Barbosa Chizzolini – Mestranda em Antropologia-USP
José Paulo Guedes Pinto – Doutor em Economia – USP
Daniel Santos Garroux – Mestrando Pós-graduação em Teoria Literária – USP
Andrea Kanikadan - doutoradando da ESALQ-USP
Nicolau Bruno de Almeida Leonel – Doutorando em Cinema-USP
Paula Yuri Sugishita Kanikadan - Doutora em Saúde Pública - FSP/USP
Luciana Piazzon Barbosa Lima - mestranda em Estudos Culturais – EACH-USP.
Gustavo Seferian Scheffer Machado - Mestrando em Direito do Trabalho – USP
Maria Tereza Vieira Parente - Mestranda em Arqueologia – USP
Marcelo Hashimoto, doutorando em Ciência da Computação-USP.
Luiz Ricardo Araujo Florence - Mestrando em Arquitetura e Urbanismo – USP
Jade Percassi - Doutoranda em Educação - USP
Maria Caramez Carlotto – Doutoranda em Sociologia-USP
Georgia Christ Sarris – Doutoranda Filosofia-USP
José Carlos Callegari - Mestrando em Direito do Trabalho - USP
Gilberto Tedeia – Doutor em Filosofia-USP
Anderson Gonçalves– Doutor em Filosofia-USP
Douglas Anfra – Mestrando em Filosofia - USP
Fábio H. Passoni Martins - Mestrando - Depto de Teoria Literária e Literatura Comparada
Eduardo Altheman Camargo Santos – Mestrando em Sociologia-USP
Fernanda Elias Zaccarelli Salgueiro – Graduanda Filosofia-USP
Guilherme Grandi - Doutor em História Econômica – USP
Yardena do Baixo Sheery - PPG Artes Visuais – ECA-USP
Lucia Del Picchia, doutoranda em Direito-USP
Fernando Rugitsky, mestre em Direito-USP
Ricardo Leite Ribeiro, mestrando em Direito-USP
Maira Rodrigues - doutoranda em Ciência Política – USP.
Ana Lúcia Ferraz - Doutora em Sociologia - USP.
Daniela Silva Canella, doutoranda em Nutrição em Saúde Pública - USP Tatiana de Amorim Maranhão – Doutora em Sociologia-USP
Ana Paula SAlviatti Bonuccelli – Mestranda em História – USP
Anderson Aparecido Lima da Silva – Mestrando em Filosofia – USP
José Calixto Kahil Cohn – Mestrando em Filosofia – USP
Antonio Fernando Longo Vidal Filho – Mestrando em Filosofia –USP
Bruna Della Torre de Carvalho Lima – Mestranda em Antropologia – USP
Ana Paula Alves de Lavos - Mestre em Arquitetura e Urbanismo - EESC - USP
Lucas Amaral de Oliveira – Programa de Pós Graduação em Sociologia – USP
Bruna Nunes da Costa Triana – Programa de Pós-Graduação em Antropologia – USP
José César de Magalhães Jr. – Doutorando em Sociologia – USP
Eduardo Orsilini Fernandes – Mestrando em Filosofia -USP
Ricardo Crissiuma – mestre em Filosofia USP
Philippe Freitas – Mestrando em Música – UNESP
Weslei Estradiote Rodrigues – Mestrando em Antropologia – USP
Bruno de Carvalho Rodrigues de Freitas – Graduando em Filosofia – USP
Camila Gui Rosatti – Graduando em Ciências Sociais – USP
Martha GAbrielly Coletto Costa – mestranda em Filosofia - USP
Rafael Gargano – Mestrando em Filosofia – USP
Antonio David – Mestrando em Filosofia – USP
Pedro Alonso Amaral Falcão – Mestrando em Filosofia - USP
Lígia Nice Luchesi Jorge, PPG em Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas – USP
Camila Rocha - Mestranda em Ciência Política - USP
André Kaysel - Doutorando em Ciência Política – USP
Michele Escoura - Mestranda em Antropologia -USP
Vladimir Puzone -Doutorando em Sociologia-USP
Arthur Vergueiro Vonk - Mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada - USP
Renata Cabral Bernabé - Mestranda em História Social – USP
Raquel Correa Simões - Graduanda em Filosofia – USP
Danilo Buscatto Medeiros – Mestrando em Ciência Política-USP
Ana Flávia Pulsini Louzada Bádue – Mestranda em Antropologia-USP
Carlos Henrique Pissardo. Mestre - Dep. de Filosofia da USP e Diplomata.
Anouch Kurkdjian – Mestranda em Sociologia-USP
Léa Tosold - Doutoranda em Ciência Política-USP
Pedro Fragelli - Doutor em Literatura Brasileira-USP
Christy Ganzert Pato - Doutor em Filosofia – USP
José Agnello Alves Dias de Andrade - Mestrando em Antropologia – USP
Nicolau Dela Bandera - doutorando em Antropologia USP
Felipe de Araujo Contier – Mestrando em Arquitetura-IAU-SC-USP
Mauro Dela Bandera Arco Júnior – mestrando em Filosofia USP
Ane Talita da Silva Rocha - mestranda em Antropologia – USP
Juliana Andrade Oliveira - Doutoranda em Sociologia
Reinaldo César – Doutorando em Ciência dos Materiais - USP
Manoel Galdino Pereira Neto - doutor em ciência política da USP
Carlos Filadelfo de Aquino, doutorando em Antropologia USP.
Jonas Marcondes Sarubi de Medeiros – mestrando em Filosofia-USP
Ana Letícia de Fiori - Mestranda em Antropologia - USP
Gonzalo Adrián Rojas - Doutor Ciência Política USP
Mariana Toledo Ferreira - Mestranda em Sociologia - USP
Julia Ruiz Di Giovanni - Doutoranda em Antropologia Social
Caio Vasconcellos - doutorando em sociologia – USP
Reginaldo Parcianello - doutorando/Literatura Portuguesa – USP
Fernando Sarti Ferreira - mestrando em História Econômica – USP
Júlia Vilaça Goyatá - mestranda em Antropologia– USP
Maria Aparecida Abreu - doutora em Ciência Política – USP
Bruno Nadai – Doutorando em Filosofia - USP
João Alexandre Peschanski - Mestre em Ciência Política – USP
Lucas Monteiro de Oliveira - Mestrando em história social – USP
Fabrício Henricco Chagas Bastos - Mestrando em Integração da América Latina - USP
Rafaela Pannain - Doutoranda em Sociologia- USP
Bernardo Fonseca Machado - mestrando em Antropologia - USP
Victor Santos Vigneron de La Jousselandière - mestrando em História - USP
Gabriela Siqueira Bitencourt - mestre em Letras - USP
Dalila Vasconcellos de Carvalho , Mestre em Antropologia Social-USP.
César Takemoto Quitário - mestrando em Letras - USP
Maíra Carmo Marques - mestranda em Letras - USP
Ana Carolina Chasin - doutoranda em sociologia-USP
Dimitri Pinheiro - doutorando em sociologia-USP
NatáliaFujita – doutoranda em Filosofia – USP
Julio Miranda Canhada – doutorando em Filosofia – USP
Caio M. Ribeiro Favaretto Mestrando Dpto de Filosofia - USP
Juliana Ortegosa Aggio - doutoranda em Filosofia - USP
Bruna Coelho – mestranda em Filosofia - USP
Ana Carolina Andrada - mestranda em Sociologia – USP
Karen Nunes – mestranda em sociologia – USP
Monise Fernandes Picanço - Mestranda em Sociologia – USP
Arthur Oliveira Bueno - Doutorando em Sociologia – USP
Guilherme Nascimento Nafalski - mestre em Sociologia – USP
Tatiane Maíra Klein, Mestranda em Antropologia Social/USP
Ana Paula Bianconcini Anjos - doutoranda em Letras – USP
José Paulo Martins Junior - Doutor em ciência política – USP
Demétrio Gaspari Cirne de Toledo - Doutorando Sociologia - USP.
Pedro Fragelli - Doutor em Literatura Brasileira-USP
Evandro de Carvalho Lobão - Doutor em Educação - FE/USP
Walter Hupsel – Mestre em Ciência Política – USP
Carina Maria Guimarães Moreira e sou doutoranda em Artes Cênicas na UNIRIO.
Marinê de Souza Pereira - Doutora em Filosofia-USP
Fabiola Fanti - Mestre em Ciência Política – USP
Verena Hitner - mestre em Integracao da America Latina - USP
Fabio Cesar Alves – Doutorando- Teoria Literária- FFLCH- USP
Frederico Hnriques - Mestre em Sociologia pela USP
Fábio Pimentel De Maria da Silva - Mestre em Sociologia – USP
Natália Bouças do Lago - mestranda em Antropologia USP
Fábio Silva Tsunoda - mestrado em sociologia – USP
Terra Friedrich Budini, doutoranda em ciência política – USP
Natália Helou Fazzioni – Mestranda em Antropologia Social – USP
Renato Bastos - Mestre em História Econômica – USP
Andreza Tonasso Galli - Mestranda da Sociologia -USP
Andreza Davidian - mestranda em Ciência Política – USP
Dioclézio Domingos Faustino - Mestrando - Filosofia – USP
Fernando Costa Mattos – Doutor em Filosofia – USP
Joaquim Toledo Jr - Mestre em Filosofia pela USP.
Erinson Cardoso Otenio - doutorando em filosofia – USP
Berilo Luigi Deiró Nosella, sou doutorando em Artes Cênicas na UNIRIO
Rafael Alves Silva – Doutorando em Sciências Sociais – UNICAMP
Ludmylla Mendes Lima - Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – USP
Tânia Cristina Souza Borges - Mestranda em Letras – USP
Miguel Barrientos - Doutorando em Ciência Política - USP.
Eveline Campos Hauck - Mestranda em filosofia pela USP
Mariana Zanata Thibes - Doutoranda Sociologia – USP
Nahema Nascimento Barra de Oliveira Mestre em Ciencias Humanas – USP
Manoel Galdino Pereira Neto - Doutor em Ciência Política-USP
Gonzalo Adrián Rojas - Doutor em Ciencia Politica-USP
Miguel Barrientos - Doutorando em Ciência Política-USP
Maria Aparecida Abreu - Doutora em Ciência Política-USP
Pedro Feliú - Doutorando em Ciência Política - USP
Fernando Gonçalves Marques - Doutorando em Ciência Política-USP
Petronio De Tilio Neto - Doutor em Ciência Política-USP
José Paulo Martins Junior - Doutor em Ciência Política-USP
Renato Francisquini - Doutorando em Ciência Política-USP
Júlio César Casarin Barroso Silva - Doutor em Ciência Política-USP
Francisco Toledo Barros - Mestrando em Arquitetura e Urbanismo
Marcia Dias da Silva - Mestre em História Social – USP
Maira Rodrigues - doutoranda em Ciência Política - USP.
Ivana Pansera de Oliveira Muscalu - Mestranda História Social – USP
Renata Lopes Costa Prado – Doutoranda do Programa de Psicologia Escolar e doDesenvolvimento Humano – USP
Emi Koide - Doutora em Psicologia - USP
Mario Tommaso Pugliese Filho - Mestre em Literatura Brasileira - USP.
Gabriela Viacava de Moraes - Mestranda em Literatura Brasileira - USP
Tatiane Reghini Matos - Mestranda em Letras - USP
Andréia dos Santos Meneses - Doutoranda em Letras - USP
Kátia Yamamoto - Mestranda em Psicologia USP
Lygia de Sousa Viégas - Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da USP.
Daniel Gomes da Fonseca - Mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada - USP
Michelangelo Marques Torres – mestrando na Unicamp e graduado pela USP
Luana flor Tavares Hamilton - mestrança em psicologia – USP
Renan Honório Quinalha - mestrando em Sociologia Jurídica na USP
Adriana De Simone - Doutora em Psicologia - IP/USP
Grazielle Tagliamento – doutorado PST – USP
Tamara Prior- mestranda em História Social – USP
Airton Paschoa –Mestre em Literatura Brasileira - USP
Daniela Sequeira - mestra em Ciência Política - USP
Thaís Brianezi Ng – doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental - USP
Davi Mamblona Marques Romão - mestrando - PSA - Psicologia
Rafael Godoi - Doutorando em Sociologia -USP
Vanda Souto - Mestranda em Ciências Sociais - UNESP - Marília
Pedro Rodrigo Peñuela Sanches - Mestrando em Psicologia USP
Grazielle Tagliamento - Doutoranda Psicologia - USP
Monica Loyola Stival - Doutoranda em filosofia - USP
Tatiana Benevides Magalhães Braga Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP
Regina Magalhães de Souza, doutora em Sociologia – USP
Ludmila Costhek Abilio - Mestre em sociologia - USP
Gabriela Viacava de Moraes - Mestranda em Literatura Brasileira - USP
Tatiane Reghini Matos - Mestranda em Letras - USP
Andréia dos Santos Meneses - Doutoranda em Letras - USP
Edson Teles - doutor em Filosofia – USP
Julia Maia Peixoto Camargo - Graduanda em Ciências Sociais-USP
Rodnei Nascimento - Doutor em filosofia - USP.
Rafael Luis dos Santos Dall'olio - Mestrando em História Social – USP
Ana Aguiar Cotrim - Doutoranda em Filosofia – USP
Tercio Redondo - Doutor em Literatura Alemã – USP
Maria Cláudia Badan Ribeiro Doutora em História Social – USP
Pedro Mantovani- Mestrando em Filosofia- USP
Stefan Klein - Doutorando em Sociologia - USP
Wagner de Melo Romão, doutor em Sociologia –USP
Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli - Doutoranda em História Econômica – USP
Felipe Pereira Loureiro - doutorando em História Econômica – USP
Thiago de Faria e Silva - Mestre em História Social – USP
Marcus Baccega – Doutor em História Medieval – USP
Luciana Moreira Pudenzi - Mestre em Filosofia - USP
Daniela Jakubaszko - Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP
Leo Vinicius Maia Liberato, ex-pos-doutorando no Departamento de Filosofia da USP
Maria Lívia Nobre Goes - Graduanda em Filosofia-USP
Agnaldo dos Santos - Doutor em Sociologia - USP
Annie Dymetman doutora em Ciências Sociais – USP
EvandroNoroFernandes – Mestre em Geografia- USP
Wilma Antunes Maciel - Doutora em História Social – USP
Luciano Pereira - Doutor em filosofia - USP
Guilherme Varella, mestrando em Direito de Estado
Constância Lira de Barros Correia Rodrigues Costa - Mestranda em Ciência Política - USP
Ester Gammardella Rizzi - Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito - USP
Cristiana Gonzalez - mestranda em sociologia – USP
Rafaela Aparecida Emetério Ferreira Barbosa - Mestranda em Direito do Trabalho - USP
Franco Nadal Junqueira Villela - Mestre em Ciência Ambiental – USP
Clara Carniceiro de Castro, doutoranda em Filosofia-USP
Marcelo Netto Rodrigues - mestrando em Sociologia – USP
Elisa Klüger – mestranda em sociologia – USP
Marilia Solfa - Mestre em Arquitetura - USP
Pedro Feliú - Doutorando em Ciência Política - USP.
Renato Francisquini, doutorando em Ciência Política - USP
Júlio César Casarin Barroso Silva - doutor em Ciência Política - USP
Andreza Davidian - mestranda em Ciência Política - USP
Andrea Kanikadan - doutorando em Ecologia Aplicada na ESALQ em Piracicaba.
Miguel Barrientos - Doutorando em Ciência Política - USP
Diogo Frizzo - Mestrando em Ciência Política - USP
Vinicius do Valle - Mestrando em Ciência Política – USP
Carolina de Camargo Abreu - Doutoranda em Antropologia - USP
Tatiana Rotolo- Mestre em Filosofia pela USP
Pedro Ivan Moreira de Sampaio - Graduando em Direito PUC-SP e Filosofia - USP
Thaís Brianezi Ng, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental – USP
André-Kees de Moraes Schouten - Doutorando em Antropologia Social – USP
Alvaro Pereira - Mestre em Direito – USP
Vinícius Spira - mestrando em Ciências Sociais - USP
Rafael Faleiros de Pádua, doutorando em Geografia-USP
André Luis Scantimburgo - Mestrando em Ciências Sociais pela UNESP de Marília/SP.
Rosemberg Ferracini - Doutorando em Geografia Humana - Universidade de São Paulo – USP
Lucas Brandão - Mestrando em Sociologia-USP
Márcia Cunha - doutoranda em Sociologia - USP
Nilton Ken Ota - doutor em Sociologia - USP
Felipe Figueiredo - Bacharel em Letras - USP
Bruno Boti Bernardi - Doutorando em Ciência Política - USP
Roberta Soromenho Nicolete - Mestranda em Ciência Política – USP
Lara Mesquita - Mestre em Ciência Política – USP
Milene Ribas da Costa - Mestre em Ciência Política - USP
Katya dos Santos Schmitt Parcianello - mestranda em História Econômica/ USP
Alcimar Silva de Queiroz - Doutor em Educação - USP
Paulo Vinicius Bio Toledo - mestrado Artes Cênicas
Ruy Ludovice – mestrando em Filosofia – USP
Pollyana Ferreira Rosa - Mestranda em Artes Visuais - USP
Patrícia de Almeida Kruger - Mestranda em Letras – USP
Giselle Cristina Gonçalves Migliari - Mestranda em Literatura Espanhola – USP
Wellington Migliari - Mestre em Literatura Brasileira - USP
Diana P. Gómez - Mestranda Antropologia Social
Simone Dantas - Mestranda em Letras-USP
Eduardo Zayat Chammas, mestrando em História Social – USP
Maristela de Souza Pereira - Doutoranda em psicologia – USP
Virginia Helena Ferreira da Costa - Mestranda em filosofia – USP
Gustavo Motta - mestrado Artes Visuais – USP
Paula Maciel Barbosa - doutoranda em Literatura Brasileira – USP
Francisco Prata Gaspar – doutorando em Filosofia – USP
Gustavo Goulart Moreira Moura -Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental – USP
Danilo Sales do Nascimento França - Mestre em Sociologia – USP
Luiz Fernando Villares, doutorando Faculdade de Direito – USP
Pedro Brandimarte Mendonça - Doutorando em Física - USP
Leonardo Crochik - doutorado em ensino de ciências –USP
Maria Isabel Veras - Doutorado em Física- USP

O DIREITO DO COMUM

ANTONIO NEGRI

Dissolução. Cientistas do direito têm destacado algumas características-chave da governança global: a tendência dos processos e práticas de governança ultrapassarem a rigidez dos sistemas jurídicos e das estruturas reguladoras; a fragmentação do sistema jurídico sob a pressão do conflito global e a colisão de diferentes gêneros e espécies de normas. A governança global mina qualquer tentativa de unificar os sistemas jurídicos frente à necessidade universal de operar em um lógica modular, com a qual seja possível gerir conflitos e assegurar a compatibilidade legal dos fragmentos do mundo global. Neste sentido, a governança global é de fato um “governo do estado de exceção”, (obviamente na direção oposta daquela teorizada por Carl Schmitt para definir soberania).

Parece-nos que esta conclusão é correta e que, em um mundo globalizado, a desconstrução das formas tradicionais do direito e da soberania é inevitável. Em suma, devemos aceitar que a governança global é “pós-democrático” no sentido de que ela não suporta mais o sistema representativo original e radical, que apoiou e garantiu a legitimidade do Estado É fato que os órgãos, as técnicas e as práticas de governança global possuem a flexibilidade e a fluidez necessária para se adaptarem a situações de mudança de forma consistente, e que sua aplicabilidade pode ser atribuída a uma pluralidade de formas controladas de regulamentação, muitas vezes de forma indireta, por oligarquias e oligopólios, especialmente os econômicos.

Certo. Mas esta análise da crise do direito e da soberania na globalização, com o forte conteúdo de desconstrução que a caracteriza, não consegue lidar com o outro termo (não ao mesmo tempo e de forma síncrona) posto neste contexto: o tema do “comum”.

Observamos primeiro que os termos global e comum não são coextensivos. Considerá-los como tal, é banalizá-los (Nancy, Esposito, etc.) Pelo contrário: qualquer seja a sobreposição política e jurídica, global é sempre um termo espacial; e, comum é sempre uma categoria de produção (com impacto significativo sobre o campo ontológico). Por quê, então combiná-los? Porque a globalização é a causa dessa ligação entre dois conceitos ou categorias tão diferentes? Claro, de modo superficial, porque na forma em que são reduzidos, não se trata de uma definição categórica e, muito menos, da constituição do comum. Na verdade, a mundialização é o motor caótico da pulverização e/ou da imprevisibilidade da atividade especialmente determinada pelo fluxo residual (não por isso menos eficaz) das ações soberanas.

Se não contarmos com uma abordagem ideológica, poder-se-ia supor que o termo “comum” intervenha na discussão como um tema central, quando, na verdade, a globalização e as práticas legais que a acompanham, o transcendental do direito privado e do direito público e consequentes práticas jurídicas que a sobre-determinam, falhamos completamente em sua definição. Parece que há aspectos, dimensões, perfis do “comum” que – se não dermos uma resposta concreta à crise de sobre e subdeterminação da ordem global – não requalificam o terreno discursivo. Retomaremos este assunto mais tarde. Ponha-se desta maneira: em razão da dissolução, não somente jurisprudencial, mas conceitual do “velho direito”, como é que se estabelece o tema do “comum”?

História. A hipótese majoritária retem que o velho direito é definido, essencialmente, com base no conceito da propriedade privada. Esse horizonte hipotético não é ultrapassável? E, então, frente à dissolução que se constrói sobre o campo da governança global do direito, como configurar a permanência do direito? Sob qualquer ponto de vista, uma análise material e dialética em torno deste argumento, parece confirmar que a dissolução determinada pela globalização, historicamente demonstrada e refletida em sua crise atual, confirma a impossibilidade da evolução do direito privado e do direito público a outro tipo de direito, um tertium genus. Menos ainda, explicitamente, sua evolução a uma “lei comum”. Deve-se acrescentar imediatamente aqui que o termo “lei” é tão ambíguo e impreciso quanto o termo “comum”.

Prova disso é quando você considera o continente direito. Na cultura ocidental, a dimensão jurídica torna-se crucial desde o momento em que se organizou em torno da figura (por isso, ficcional) do indivíduo-proprietário. O quadro institucional (e conceitual) da lei ocidental tem suas raízes nas necessidades do indivíduo, moldado nas relações conflituosas (de soma zero) que ele tem com o seu homólogo, no caso. O estabelecimento do Corpus Juris de Justiniano serve como ponto culminante da evolução do direito no mundo romano, e o que lhe dá forma e constituição nos próximos dois mil anos de história legal. Assim, o direito romano será reaprendido e treinado de acordo com as necessidades do capitalismo nascente. É a interpretação deste, de forma adequada, que servirá de instrumento para organizar a acumulação primitiva de capital. É uma característica desta história o fato de que os procedimentos jurídicos, processuais e jurisprudenciais consolidaram o direito do indivíduo-proprietário e produziram um mecanismo de validação uniforme da propriedade (o mercado) e da soberania (o Estado). Ambos sistemas (mercado e Estado) concentram seu poder sobre o indivíduo excluindo qualquer outro sujeito da esfera de jurisdição dada. Rhodus Hic, hic salta. Procurar, neste âmbito, uma passagem para além da estrita concepção privatística do direito e de seus procedimentos de aplicação e verificação é inútil. Consequentemente, a busca de uma definição para o “comum” nesta área é completamente inadequada. O direito de tradição continental (notadamente romano-germânico) não permite reconhecer o “comum” do modo que historicamente é interpretado. A fronteira entre o público e o privado (aquilo que vai do conflito à soma zero) não deixa espaço, até agora, para a definição de um terceiro polo.

O vazio conceitual ocorre, mesmo quando tomamos a tradição da antiga lei saxônica que é chamada de common law – que podemos traduzir como um direito “para” o comum, para o ordinário do povo. Se trata de um direito arcaico intimamente ligado às estruturas tradicionais comunitárias das cidades medievais. Porém, Maitland e Polock quando analisam este “direito para o ordinário do povo” advertem que, longe de ser um direito do “comum”, é um direito individual, um direito que não está em relação de ruptura com o individualismo jurídico, ou seja, com o interesse da propriedade. Na verdade, é um direito que o indivíduo pode opor ao público, um direito que de nenhum modo pode reconduzir à essência do “comum”, àquela “equidade na coprodução de norma jurídica não estatal” (que é a recente definição do direito do “comum”). Não é mera coincidência que as definições sobre o “comum” são tomadas emprestadas aos anos ‘50, por exemplo de Hayek, e são perfeitamente conhecidas em seu sentido e significação.

Parece ser muito difícil reconhecer um direito do “comum” que nasce dentro das velhas estruturas jurídicas (mercado, Estado) e delas se emancipa. Tanto mais, se (como frequentemente se teoriza no campo do socialismo jurídico) se pensa que a evolução do direito público, em função antagonista ao direito privado, forneça uma base para a transição ao direito do “comum”. Interessante, a propósito, é a referência sobre a experiência soviética. Pasukanis – o maior jurista do tempo – viu imediatamente com grande clareza. Não se dá – disse ele – o direito proletário “com a mera transição para a fase do socialismo desenvolvido. O desaparecimento das categorias de direito burguês significa a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento gradual do momento jurídico na relação entre os homens”. Quanto ao Estado soviético, este é definido como um capitalismo de Estado proletário. No capitalismo de Estado proletário, são dadas, de acordo com Pasukanis, as duas realidades do intercâmbio e do direito. A primeira consiste numa vida econômica que se desenvolve de forma “pública” (programas gerais, planos de produção e distribuição, etc). A segunda consiste na ligação entre as unidades econômicas que realizam suas atividades “na forma do valor do valor das mercadorias circulantes e, em seguida, na forma jurídica do contrato”. Agora é evidente, que a primeira tendência (de direito público e planejamento) não apresenta qualquer perspectiva progressiva e se abre somente para uma extinção e gradual da forma jurídica em geral, refletida somente na gestão econômica da sociedade. A segunda tendência é a que, possuindo as formas de autonomia econômica, e considerando-as na suas formas de cooperação e interação, é que poderá crescer em direção ao “comum”.

Curioso é notar que no discurso soviético (minoritário, mas marxianamente correto) de um Pasukanis, venha sublinhada a impossibilidade de extração do direito do “comum” do direito público e venha, ao invés disso, considerada a possibilidade jogar sobre a cooperação do trabalho coletivo, não só como uma saída para a construção privatista do direito, mas também como uma construção de novas formas de vida e de organização social não-capitalísitica (o “mercado sem capitalismo” - do camponês chinês comum, em Arrighi é um modelo com a mesma ressonância).

E a história atual? Na qual se afirmam os procedimentos de governança, nos dá alguma indicação positiva de uma transição para o “comum”? É possível entrever, nos procedimentos de governança, uma “tendência à descentralização” contra a forte propensão à concentração do poder capitalista global sobre o mundo? À fragmentação dos poderes contra a sua unidade econômica sólida? À possibilidade de controle difuso por parte de uma opinião pública ativa? à experimentação de fundo dos mecanismos de participação na divisão social do trabalho e na redistribuição da riqueza? Com elevado otimismo, poderíamos imaginar, mas na realidade vemos que a governança é concebida como um exercício de poder e produção de normas jurídicas, como modalidade institucional aberta, flexível, de geometria variável, em um programa jurídico livre de centro e dependente de mecanismos de conflito entre normas e de competição entre ordenamentos – bom, que sobre este modelo já se sabe de há muito utópico e que a história atual mostra bastante a impossibilidade de um desenvolvimento linear do sistema legal vigente em direção a um sistema de direito do “comum”.

Factual. Tendo dito o que temos dito, resta perguntar por que o mundial recorda o “comum”. A lembrança surge porque a globalização, por contraste, nos situa imediatamente à frente de um outro “comum”, por assim dizer “ruim”: o ordinário do capital. A transformação da lei do valor (quando a medida do tempo de trabalho substituiu o seu poder de cooperação, e os dispositivos de circulação de mercadorias, serviços, indústria e comunicação surgem como agentes da exploração capitalista, quando o processo de subsunção real, isto é, da transição da produção industrial de bens para o controle da vida social envolvida no trabalhar, com a automação e informatização da produção – bem, tudo isto tem o capital como biopoder global. A nova base em que aexploração se instaura e efetiva, consiste em uma transição progressiva do comando da fábrica (organização e disciplina do taylorista e fordista em massa dos trabalhadores) para o controle da sociedade (através da hegemonia do trabalho imaterial na produção, da valorização através do trabalho cognitivo, do controle financeiro, etc): vale dizer que a nova base sobre a qual opera o capital é a de explorar a cooperação, as linguagens, as relações sociais comuns (reside, em geral, nas chamadas “externalidades social”, internalizadas à produção capitalista em escala global).

Um só exemplo, partindo da atual crise econômica global. Muitas são as leituras que são feitas. Em todo caso, vindo da direita ou da esquerda, as razões para a crise eram reputadas ao “descolamento” entre as finanças e a “produção real”. Se assumirmos o novo pressuposto de que temos falado até aqui, se refere ao surgimento de uma nova qualidade de trabalho vivo “comum” e a sua exploração como tal, insistiremos que a “financeirização” da economia global não é um desvio improdutivo ou parasitário de quantidades crescentes de mais-valia e de poupança coletiva, mas uma nova forma de acumulação de capital, simétrica aos novos processos de produção de valor social e cognitivo. Para superar esta crise, é inútil fingir que a resposta possa evitar a construção de novos direitos de propriedade sociais e de bens “comuns” – e esses direitos, obviamente opõe-se ao direito de propriedade privada e exigem a ruptura daquele direito público no qual a propriedade privada representa a força de lei.

[Repetir como elaborado no Uninomade workshop: “se, finalmente, agora o acesso as bens comuns, tomou a forma de ‘dívida privada’ (é somente em torno do acumulação desta dívida que a crise explodiu), hoje, então é, pois, legítimo reivindicar o mesmo direito na forma de “renda social”. Reconhecer estes direitos comuns é, portanto, a única maneira e justa via para acabar com a crise”].

Aproximações 1. O direito tradicional não pode, portanto, definir (e até mesmo a recorrer) ao “comum”. Estará sempre constrito, na atual crise, a um ato de governança, por assim dizer, restritiva e condenada a uma ambiguidade substancial. A governança não pode realmente fazer fluir o intercâmbio social e, ao mesmo tempo, otimizar o fluxo. Isto significaria transcrever a soberania em termos negociais, desfazer a hierarquia das estruturas de decisão, introduzir uma perspectiva de relações fragmentadas e policêntricas, enfraquecer a tradicional separação entre público e privado -, mas não poderia fazer nada mais que isso. Chignola nos lembra, seguindo as pegadas de John Fortescue e do juiz Coke: “o termo governança refere-se, desde o início, tanto ao governo enquanto pessoalmente referido como o direito do príncipe a comandar, quanto à hierarquia de cargos administrativos que dele depende, como, muitas vezes, ao conjunto de normas, costumes, estatutos e liberdades que definem o entrelaçamento do direito e dos poderes de organização político civis”. No pôr-do-sol do Estado de Direito são repetidas os mantras do seu alvorecer.

Diminuindo a desconfiança com que até agora temos lidado com com o conceito de governança, admitindo, todavia, que ela pode abrir-se em termos constituintes, em condições diversas às que tem se apresentado. Assumamos que o terreno do “comum” que se apresenta mais próximo, como um campo de transição do público ao “comum” e que a governança se adapte à esta transição: a pergunta a fazer, neste momento, seria: se o direito tradicional não consegue definir (para controlar, para transcrever, para estabelecer) o do “comum” – de que modo pode a governança aproximar-se dele? Isto é: a governança (ambiguamente, expressando uma espécie de cognato) pode construir o novo direito?

Aproximações 2. Do ponto de vista reflexivo da filosofia do direito tentamos aqui levantar a questão de como se define “o comum”. Proponho qualquer exemplo que representem os casos (mesmo os que resultem em combinações infinitas), mas que talvez possa ajudar-nos a prosseguir.

Por um lado, então, o “comum” foi definido em termos de um darwinismo sociopolítico como o efeito das relações de coprodução econômicas e políticas. A este respeito, é bem conhecida a famosa fórmula de Saint Simon, retomada por Marx e Engels, segundo a qual a “administração das coisas” tomará o lugar do “governo dos homens”. O “comum” aqui é revelado como a administração econômica da sociedade em si. Ao auto-equilíbrio que o mercado neoliberal sugere, o socialismo responde com a auto-organização econômica consciente dos homens. Essa fórmula retorna constantemente no socialismo, pelo menos até os escritos de Lênin. Isto trata, evidentemente, de uma teleologia do “comum”, enervada na racionalidade tecnológica industrial. O “comum” é um “feito” (fatto particípio do verbo fare) “um movimento real que efetiva um estado das coisas atual”.

Um modelo diferente de definição do “comum” é aquele sociológico institucional. O desenvolvimento, da sociedade civil às formas de organização pública, até um conceito do “comum” concebido como resultado societário ou associativista, é visto e apontado como o produto de uma atividade contínua. À necessidade de base económica e tecnológica do primeiro modelo, aqui se opõe um ativismo processual e social. Considerado em suas figuras mais recentes, o “comum” de forma “institucional” é definido (p.ex. em Luc Boltanski) por meio do abandono da sociologia que se concentra no acento sobre a dimensão vertical e sobre a opacidade da consciência alienada dos atores, em vantagem de uma sociologia que insiste sobre relações horizontais (e, claro, redes) e sobre a ação “situada” de atores guiados por razões estratégicas ou necessidades morais. Os elementos da “performatividade” do social são colocados em primeiro plano e, mesmo que o público (o Estado) seja chamado e assunto (assumido) como elemento de equilíbrio do processo, este institucionalismo sociológico pragmático reconhece as contradições dentro das quais se processa, portanto, fecha, o poder de seus dispositivos abertos. Em suma, “um movimento real, que faz atual um estado de coisas.”

Um terceiro modelo interessante (que representa a média dos extremos), sempre a partir da perspectiva de uma definição de “comum”, é a reapresentação de uma teoria filosófica dialética (débil) das relações. Um caminho sobre o qual tinha avançado o formalismo de Habermas e sobre o qual procede o realismo de Honneth. O “comum” é visto aqui como uma Aufhebung (fraca), desnecessária. A dificuldade de sua realização consiste em determinar – no indefinido contexto de condições – a compossibilidade das diferenças. Experimentamos coisas que, para outros, que quase se tornam evidentes no desenvolvimento do projeto foucaultiano, quando se considera um modelo epistemológico mais importante do que um dispositivo político.

Estas aproximações são assim. Todos atacam a ideia de que o “comum” pode ser de alguma maneira pressuposto e afirmam a suposição de que só podemos pensar as práticas sociais de produção do “comum”. Como a governança pode interpretar, e possivelmente ir além, dessas premissas em um caminho que leva para o “comum”?

Para evitar novos obstáculos, perguntamos aqui se uma determinação de ação em comum deve necessariamente ter uma forma de “instituição”, quando se avança sobre este campo. Ao se responder negativamente à questão se poderá preferivelmente insistir que a produção de regras não relevantes na legislação podem assumir uma forma de uso negocial, de práticas do “comum” que não podem se dar senão através de determinações concretas e de relações de poder. Neste contexto, se poderá ainda depois perguntar: como articular o terreno da propriedade com o terreno da utilidade? Quais são as condições de compossibilidade dos indivíduos/singularidades? Como evitar a força da solidez da identidade encerre qualquer possibilidade de compresença de singularidades? Quais são os processos de subjetivação medeiam através destes processos constitutivos? O estabelecimento do “comum” não “aditivo” e tampouco “integrativo”, um “comum” que não é “somma” nem mesmo “organismo” pode ser dar-se fora de uma progressão (ou regressão, forte ou tênue) da dialética hegeliana?

Para responder à pergunta e sobre algumas outras questões/experiência.

Experimento 1. Se assumirmos que o contexto da governança, em que a pluralidade de atores desenvolve a sua ação, é desprovida de qualquer determinação finalística ou de valor; se toda determinação é um poder que ganha (ou perde) em comparação com outros poderes, o primeiro exemplo jurídico que se pode referir à busca do “comum”, é aquele tradicionalmente representado pelo direito internacional de guerra. Aqui, paradoxalmente, o “comum” se desliga do global. Este é certamente um campo livre de formalismos. São, de fato, evidentes os riscos que se corre, no caso de pretende operar aqui com conceitos de governo liberal, de direito ou doutrinas de justiça ancoradas nos diagramas do racionalismo metafísico abstrato. Assim fazendo, diminuir-se-ia a prática jurídica para a simples memorização de fatos – e esta é a maneira pela qual a sociologia e empirismo realistas conduziram-nos a um campo (definido por Carl Schmitt no direito internacional como o não-direito), onde a governança é definida pela ausência de qualquer possibilidade de nomos. Estamos novamente imersos na dissolução. O experimento de direito internacional não modifica a dissolução senão através do deslocamento. Este deve por-se sobre o terreno da globalização, como uma nova reflexão. Que reconheça o antagonismo básico entre eles, em todos os sentidos, mova o processo de revisão, o que elimina qualquer homologia com o passado, todas as referências a antigas constituições internacionais, para construir ovos e eficaz regulamentos provisórios sobre as novas áreas e temas (biopolítica e, especialmente, os meios de comunicação financeira) etc, etc.

Um segundo exemplo é o dos direitos sindicais, na luta de classes. Na transição pós-fordista e durante o curso da crise econômica – desfeito o compromisso do Reno e, em geral o contratualismo industrial, mais ou menos corporativo – o problema da regulação do trabalho social e de redistribuição do “produto interno bruto” tornaram-se questões agora quase livres de todos estatutos jurídicos, deslocadas do terreno da produtivo diretamente ao da (re)produção social. Mesmo neste caso, qualquer homologia com as lei sindicais do passado é em vão, mesmo aqui há uma iniciativa para abrir um processo constituinte. No entanto, o que é, hoje, é também neste caso, um terreno caracterizado por determinações semelhantes às estabelecidas no direito internacional – um verdadeiro desastre das formas jurídicas tradicionais. Para o momento parecem possíveis apenas táticas de operações de resistência.

Experimento 2. É a linha da Commonwealth. Ele nos força a enfrentar o problema de um eventual direito do “comum” do ponto de vista de uma ontologia do “comum”.

Este caminho começa a partir do reconhecimento da construção e da sujeição funcional do “comum” por parte do capitalismo global, financeiro, militar. Longe de propor processos de reconhecimento puro ou de apropriação da estrutura e das figuras do “comunismo de capital” e seu Estado, esta linha de pensamento sugere conceber os processos de governança como instrumento de ulterior desestruturação do direito tradicional e, em segundo lugar, objetiva o procurar, no interior dessa desestruturação, o emergência de novas figuras de cooperação produtiva.

A única saída, em relação a essas questões, parece ser:

1. A reafirmação do tema do “comum” em um campo que não é socialmente homogêneo, que não provê institucionalidade nem homologia pre constituinte, mas é atravessado por antagonismos originais: por um lado há uma força de trabalho, mais e mais precária, que reconhece sua autonomia do capital; de outro, está a relação de comando que o capital está sempre em busca de renovar. A solução desses conflitos não pode dar-se segundo alguma determinação teleológica ou dialética. É um contexto maquiavélico dentro do qual se move. Cada determinação é uma potência que ganha (ou perde) em comparação com outra potência. O sentido do processo aqui é identificado ao quanto assimilado e produzido pelo poder (potência) de decisão coletiva.

2. Neste quadro, o “comum” não pode ser colocado em continuidade com a tradição jurídica, não pode configurar-se como um terreno dentro do qual se propõe, a partir do exterior, as ideias de justiça… pode somente conter a construção dos usos e governar-se em imanência, em sua reciprocidade e mútua. O direito internacional (como não-direito propriamente) é, a partir deste ponto de vista, o modelo ao qual podemos nos referir (mas em sentido inverso, ao contrário do modo como Carl Schmitt abordou a questão).

3. A inversão de perspectiva schmittiana, não de recuperação de “exceção”, mas na insistência de um “excedente” do trabalho cognitivo, a assunção de um contexto bio-político adequado, etc, em suma, o estudo das doutrinas e das práticas desestruturantes do direito ocidental e o exercício (na desconstrução do direito) do poder constituinte, constituem a única reposta viável hoje sobre estas questões.

Pasukanis, nos anos 20, havia proposto algumas linhas muito interessante: “é bastante claro que a lógica dos conceitos jurídicos corresponde à lógica das relações sociais em uma sociedade que produz bens e que, é propriamente nestas relações e não na permissão de uma autoridade, que há de ser encontrado a raiz do sistema de direito privado. A lógica das relações de dominação e subordinação, portanto, são apenas parcialmente abrangidos pelo sistema de conceitos jurídicos. Assim, o conceito jurídico de Estado nunca pode tornar-se uma teoria e sempre será a alteração ideológica dos fatos”. Imaginar um direito do “comum” (mas por que falar agora de direito, não é?) deve, desse modo, – uma vez desestruturada a constituição proprietária - a partir da pluralidade, da rede de relações de trabalho com formas de regulação, o que compreende o desenvolvimento do potencial das relações de produção sociais – que são, na equidade e no interior do que é coproduzido, normas jurídicas não-estatais para regular a vida em comum.

Devemos seguir o exemplo de fenômenos cooperação da força de trabalho, da auto valorização, introduzindo um excedente de capacidade de produção do trabalho individual e coletivo; necessário caminhar ao longo do interior dos fenômenos financeiros, revelando o poder das relações simétricas entre a produção social e o sistema de signos – reinventando provavelmente a este nível, uma teoria da “valor-trabalho” (e sua medição). É só neste caso, será possível estabelecer as linhas que, por exemplo (e não simplesmente em termos táticos, mas finalmente estratégicos), subindo da condição do Welfare ao “comum” (que sob esta luz, começa a se definir como um espaço de participação democrática mais igualitária de distribuição).

Nota para nota de Teubner. (Hardt e Negri) Teubner começa de modo confuso alguns conceitos do Commonwealth, mas em sua caracterização definitiva das diferenças e semelhanças entre o seu e o nosso caminho é muito justo e generoso

Há duas semelhanças com a nota: 1. O reconhecimento da insuficiência da alternativa entre as soluções neo-liberal de mercado e as soluções keynesianas ou socialistas (Estado). Se uma terceira via ainda não foi dada, é preciso inventá-lo.

2. valorização da pluralidade do campo social e a insistência em um movimento político baseado na multiplicidade. Bem até agora.

A primeira crítica de Teubner é, de fato – quando chega o final de seu discurso – que nós sustentamos uma solução política unificada e totalizante político que trai nossa crença inicial na multiplicidade. Sobre este ponto, nós aderimos à insistência quanto à multiplicidade de Teubner, simplesmente colocando neste contexto, a necessidade de “fazer multidões”, ou simplesmente de fazer sociedade – não como uma totalidade social unificada, mas como um contexto coerente de relações sociais estáveis. Nós não acreditamos que estejamos muito longe de Teubner sobre essa questão.

Acreditamos, todavia, que a discussão vai se extende em profundidade quanto à utilização dos conceitos sobre os setores público e privado. De acordo. Em primeiro lugar, com o uso de que Teubner faz do conceito de “público”. Ele quer destruir o Estado e usa este conceito para muitas das determinações a que nós chamamos pelo termo “comum”. A questão fica mais complicada quando ele quer recuperar o conceito de “privado”. De passagem, ele diz que se pode estar de acordo com a nossa crítica da propriedade privada, mas que ainda existem muitos outros usos para o conceito, que ele gostaria de manter privados. Nós nunca dissemos que todas as garantias para o que Teubner quer manter como privado devem ser jogadas fora. Pelo contrário. Gostaríamos de caracterizá-los, ao invés de usar a noção de privacidade (privacy), com os conceitos de autonomia e liberdade, conceitos estes que são muito diferentes porque são fundados não sobre a separação e proteção, mas sim sobre nosso poder (power).

Finalmente – talvez o mais importante – cremos que Teubner subestima a intensidade da nossa crítica à propriedade privada, ou melhor, subestima a transformação social radical exigida pela abolição da propriedade privada. Ele assume que todos os outros significados da “privacy” (fora da propriedade) são neutros com relação à propriedade “privada” -, enquanto nós acreditamos que eles estão intimamente envolvidos. Em suma, gostaria de aprofundar com Teubner o argumento de Psukanis, quando ele demonstra que a propriedade privada funda o direito burguês (e capitalista), enquanto as outras energias da singularidade (a responsabilidade no trabalho, a alegria da pesquisa científica, a solidariedade social etc) permitem que você construa o “comum”. Estamos tão convencidos disto que não nos parece estranho que o “comum” possa ser construído a partir das virtudes pessoais, em detrimento da força do público, do Estado (que novamente se ergue para garantir a proteção da propriedade). Teubner pode não perceber as condições em que a propriedade privada, em todos os contextos, ameaça os jogos de linguagem que ele deseja preservar.

(tradução do original italiano para o português por @sergiorauber)

Por que precisamos de outra democracia

Movimentos não protestam apenas contra injustiça. Perceberam que instituições submeteram-se aos interesses financeiros – e precisam ser mudadas

Por Toni Negri e Michael Hart

As manifestações sob a bandeira de Occupy Wall Street ressoam em tantas pessoas, não só porque dão voz a uma sensação de injustiça econômica, mas também, e talvez mais importante, porque manifestam sofrimentos e aspirações políticas. Ao espalharem-se da parte sul de Manhattan para cidades grandes e pequenas por todo o país, mostraram que a indignação contra a ganância das grandes corporações e a desigualdade econômica é real e profunda. Mas, no mínimo tão importante quanto isso, é o protesto contra a falta – ou o fracasso – da representação política. Não é tanto a questão de se um ou outro político, esse ou aquele partido, nada faz ou é corrupto (embora isso, também, seja verdade), mas de se o sistema político representativo é, em termos gerais, inadequado. Esse movimento de protesto pode, e talvez consiga, converter-se processo democrático constituinte genuíno.

A face política dos protestos de Occupy Wall Street aparece quando o pomos ao lado de outros “acampamentos” do ano em curso. Juntos, formam um ciclo emergente de lutas. Em muitos casos, as linhas de influência são claras. Occupy Wall Street inspirou-se nos acampamentos das praças centrais na Espanha, que começaram dia 15 de maio, depois da ocupação da Praça Tahrir, no Cairo, no início da primavera. A essa sucessão de manifestações, é preciso acrescentar vários outros protestos, como as longas manifestações na Assembleia Estadual em Wisconsin, a ocupação da Praça Syntagma em Atenas, os acampamentos de israelenses por justiça econômica. O contexto desses vários protestos são muito diferentes, claro; e não são simplesmente repetição do que acontecera noutros lugares. Mas cada um desses movimentos conseguiu traduzir para a própria situação alguns elementos comuns.

Na Praça Tahrir, a natureza política do acampamento e o fato de que os manifestantes não eram nem jamais seriam representados, em nenhum sentido, pelo atual regime, eram visíveis. A exigência “Mubarak tem de sair” mostrou-se suficientemente potente para envolver todas as demais questões. Depois, nos acampamentos da Porta do Sol em Madri e da Praça Catalunha em Barcelona, a crítica da representação política foi mais complexa. O protesto espanhol reuniu vasto conjunto de demandas sociais e econômicas – sobre o déficit público, moradia e educação, dentre outras –, mas sua “indignação”, que a imprensa espanhola rapidamente apontou como a emoção que os definia, foi claramente dirigida contra um sistema político incapaz de tratar daquelas questões. Contra o arremedo de democracia que o atual sistema representativo oferece, os manifestantes dirigiram um dos seus principais slogans: “Democracia real ya,” ou “Democracia real, já”.

Occupy Wall Street deve ser entendido, então, como mais um desenvolvimento ou permutação dessas exigências políticas. Mensagem alta e clara dos protestos, é claro, é que os banqueiros e as indústrias da finança de modo algum nos representam: O que é bom para Wall Street com certeza não é bom para o país (ou para o mundo). E parte mais significativa do fracasso da representação, portanto, deve ser atribuída aos políticos e aos partidos políticos aos quais compete representar os interesses do povo, mas que, de fato, só representam, mais claramente, os bancos e os agentes que emprestam dinheiro. Esse reconhecimento leva a uma questão aparentemente simplória, básica: a democracia não deveria ser o governo do povo sobre a pólis – quer dizer, sobre toda a vida social e econômica? Em vez disso, o que se vê é que a política tornou-se subserviente aos interesses econômicos e financeiros.

Ao insistir na natureza política dos protestos de Occupy Wall Street, não estamos dizendo que todas as questões políticas possam ser equacionadas em termos das disputas entre Republicanos ou Democratas, ou os resultados do governo Obama. Se o movimento continuar a crescer, é claro, talvez force a Casa Branca ou o Congresso a tomar novos rumos de ação, e pode vir a ser, mesmo, significativo ponto de contenção durante o próximo ciclo eleitoral presidencial.

Mas tanto o governo Obama quanto o governo George W. Bush são autores de “resgates” de bancos e banqueiros. A falta de representação, que os protestos evidenciaram, aplica-se aos dois partidos. Nessas circunstâncias, o clamor dos espanhóis por “democracia real, já” soa ao mesmo tempo, urgente e desafiador.

Se observados em conjunto, esses diferentes acampamentos de protesto – do Cairo a Atenas, Madison, Telavive, Madrid e, agora, New York – manifestam uma insatisfação com as estruturas da representação política. O que oferecem, como alternativa? O que é a “democracia real” que tantos propõem?

As pistas mais claras estão na própria organização interna dos movimentos – especificamente, no modo como os acampamentos oferecem novas práticas democráticas. Esses movimentos desenvolveram-se segundo o que designamos como “uma forma multitudinária” e são caracterizados por frequentes assembleias e estruturas participativas para construir e tomar decisões. (E vale a pena observar que, quanto a isso, Occupy Wall Street e várias das demais manifestações também têm raízes nos movimentos de protesto antiglobalização que se estenderam, no mínimo, de Seattle em 1999 a Gênova em 2001.)

Muito se tem dito sobre mídias sociais como Facebook e Twitter, sempre usados nos acampamentos. Esses instrumentos de rede, evidentemente, não criam os movimentos, mas são ferramentas úteis, porque, em vários sentidos, correspondem à estrutura dos experimentos horizontais e democráticos dos próprios movimentos. Em outras palavras, o Twitter é útil, não porque divulga eventos, mas porque reúne as ideias de uma grande assembleia, para uma específica decisão, em tempo real.

Não espere que os acampamentos, então, desenvolvam líderes ou representantes políticos. Nenhum Martin Luther King, Jr. vai emergir das ocupações de Wall Street e outras. Para melhor ou para o pior – e certamente estamos entre aqueles que consideram OccupyWallStreet um assunto promissor – este ciclo emergente de movimentos vai se expressar através de estruturas de participação horizontal, sem representantes específicos. Tais experiências de organização democrática em pequena escala teria que se desenvolver muito mais, é claro, antes de se poder elaborar modelos eficazes para uma alternativa social, mas os ocupantes expressam poderosamente sua aspiração por uma “democracia real”.

Enfrentando a crise (financeira do capitalismo) e vendo claramente a forma como ela está sendo gerenciada pelo sistema político atual, os jovens que participam dos vários acampamentos fazem, e com inesperada maturidade, a desafiadora pergunta: “Se a democracia – ou seja, a democracia que temos hoje – está atônita sob os golpes da crise econômica e é impotente para fazer valer a vontade e os interesses da multidão, não seria a hora , talvez, de considerar que esta forma de democracia seja obsoleta?”.

Se as forças políticas geradas pelo poder da riqueza e das finanças passaram a defender interesses supostamente democráticos das atuais Constituições, incluindo a dos EUA, não é possível e mesmo necessário, hoje, propor e construir novos valores constitucionais que possam abrir avenidas e retomar o processo de busca coletiva da felicidade? Tal raciocínio e tais demandas, já vivamente explicitados nos movimentos idênticos que acontecem na Europa e na África Mediterrânea que se implantaram pelos EUA a partir de Wall Street, mostram a necessidade de um novo processo Constituinte e democrático.

Das revoltas a uma nova política

Toni Negri e Michael Hardt oferecem reflexões para superar três pilares do capitalismo: propriedade, trabalho subordinado e representação

*Prefácio à edição em castelhano de “Commonwealth — El proyecto de una revolución del común”

Por Toni Negri e Michael Hardt | Tradução: Daniela Frabasile

Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.

Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.

Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.

Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.

A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.

Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.

Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.

No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.

Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.

De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?

Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.

Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.

SOBRE O FIM DOS JORNALISTAS, NA ACAMPADA Bruno Cava

Estou saindo da acampada do 15-0 na Cinelândia e uma jovem jornalista, de um velho jornal carioca, me aborda. Depois de perguntar nome, idade, ocupação, vai direto ao ponto:

— O que vocês propõem, qual é a pauta de reivindicações do movimento?

— Acho que mais importante é perguntar o que o movimento faz, o que ele produz e, mais importante ainda, como ele faz e produz. A forma é diferente.

— Tá, mas, pode dar um exemplo…

— Por exemplo, aqui se está experimentando fazer uma mídia de maneira que não precisemos mais de jornalistas e jornalismo. — respondo sem tom de provocação, mas ela reage com uma atitude de condescendência, que é o pior tipo de arrogância.

— Sei, porque a mídia é golpista e tal, e vocês não, são os revolucionários. O jornalismo vai continuar existindo de um jeito ou de outro.

— Se o jornalismo surgiu há alguns poucos séculos, ele pode acabar também, as coisas mudam. E não entraria no mérito se é golpista, acho que seja mais simples e menos conspiratório: é porque você não é livre enquanto jornalista, a sua reportagem não será livre, esse movimento no fundo também é pra você.

— Claro que não. Por quê?

— Você tem um chefe, uma pauta, uma carreira, uma edição centralizada dos textos, você não escreve o que deseja e sobre o que deseja e, mais importante, como deseja; tem uma linha editorial, tem que respeitar certa forma de escrever, de construir e selecionar os fatos, tem truques e convenções impostos de fora pela profissão do jornalismo, do jornalismo sério. Por isso que a nova mídia tem que ser pós-jornalista e quando o jornalista vem pra nova mídia, ele precisa largar essa identidade e esses macetes. Se a nova mídia reproduz o mesmo jornalismo no formato 2.0, não é nova. — e ela vai anotando, condescendente.

— Então o melhor é deixar tudo para o estado, estatizar?

— Se fosse isso, a gente não estaria aqui acampado, teria procurado os partidos pra disputar o estado. Acho que a mídia não será livre quando toda ela for estado, mas quando todos formos mídia. Todo mundo pode colaborar numa narrativa em comum. A gente tá cansando de ouvir que no mundo socialista não tinha imprensa livre e é verdade. Mas não é muito diferente daqui. Lá na Romênia do Ceausescu o controle era mistificado pelo interesse público e o estado, e aqui ele é mistificado pela livre iniciativa, que qualquer um é livre pra montar uma empresa jornalística ou mudar de emprego, mas no fundo, aqui e na Romênia, é o mesmo jornalismo, ou seja, a falta de liberdade pra falar e de criatividade em comum. Se você for a favor da linha dos seus chefes, está bem, é livre, mas experimenta colocar opiniões verdadeiramente contrárias e que incomodam, ou então a fazer diferente, aí te censuram na certa. Claro que eles vão falar que no texto você perdeu a objetividade dos fatos, que está muito carregado de opiniões e achismos, que está político, ou horror, que está ideológico. Como se o fato e o jeito de montar esse fato que eles querem, e o modo como ensinam e pautam seus jornalistas, como prometem a carreira profissional, já não fosse a ideologia em primeiro lugar. E aí se você tem a opção de aceitar ou mudar pra outro jornal no mesmo formato controlado por outra família de poderosos, então não vai mudar muito. Você está num ciclo vicioso que se chama liberdade de imprensa, mas essa democracia não é real. Por isso quando a Acampada toma a palavra e faz diferente, essa é uma proposta importante. — nessa hora, a jornalista mudou a expressão, talvez tenha se dado conta que não ia me pegar no contrapé tão fácil, então tentou uma última.

—- Então você quer extinguir o jornalismo, isso não é complicado, não é totalitário?

— É tão totalitário quanto o fato que esta entrevista não vai aparecer no seu jornal amanhã.

E não apareceu mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

texto de Michael Hardt

A crise econômica e financeira que eclodiu no outono de 2008 provocou uma transformação extraordinariamente rápida no domínio do imaginário político. Se há somente alguns anos, o discurso sobre a mudança climática havia virado pilhéria e sido qualificado nas mídias dominantes de conjectura exagerada e apocalíptica, de um dia para o outro a realidade da mudança climática se tornou um consenso quase universal. Da mesma maneira, a crise econômica e financeira modificou as concepções dominantes de capitalismo e de socialismo. Há apenas um ano, toda crítica às estratégias neoliberais de desregulação, de privatização e de desmantelamento das estruturas de proteção social – sem falar ao próprio capital – era qualificada nas mídias dominantes de proposição delirante. Hoje, Newsweek proclama em primeira página, com ironia, certo, mas apenas em parte, “Agora somos todos socialistas”. O poder do capital é subitamente questionado, pela esquerda e pela direita, e certa forma de regulação e de gestão públicas de tipo keynesiano ou socialista parece inevitável.
Devemos, contudo, abandonar essa alternativa. Parece muitas vezes que a única escolha a nossa disposição é capitalismo ou socialismo, o reino da propriedade privada ou aquele da propriedade pública, de tal modo que o único remédio para os males da gestão pública seja a privatização, e para os males do capital a nacionalização, isto é, o exercício da regulamentação estatal. Devemos examinar outra possibilidade: nem a propriedade privada do capitalismo, nem a propriedade pública do socialismo, mas o comum no comunismo.
Um grande número de conceitos centrais no nosso vocabulário político, inclusive o comunismo, mas também a democracia e a liberdade, foram a tal ponto corrompidos que se tornaram quase inutilizáveis. De fato, no seu uso corriqueiro, o comunismo veio a significar seu oposto, ou seja, o controle
estatal absoluto da vida econômica e social. Nós poderíamos, é claro, abandonar esses termos e inventar novos; mas, assim fazendo, abandonaríamos igualmente a longa história das lutas, das aspirações e dos sonhos que estão ligados a eles. Penso que é mais correto lutar para restabelecer ou renovar a significação dos próprios conceitos. No caso do comunismo, isso implica proceder a uma análise das formas de organização política que hoje são possíveis e, antes disso, a um exame da natureza da produção social e econômica contemporânea. Eu me limitarei neste artigo ao trabalho preliminar da crítica da economia política.
Uma das razões pelas quais as hipóteses comunistas das épocas precedentes não são mais válidas é que mudou a composição do capital, como também as condições e os produtos da produção capitalista. Sobretudo, a composição técnica do trabalho se modificou. Como as pessoas produzem ao mesmo tempo dentro e fora do local de trabalho? O que produzem e em que condições? Como a cooperação produtiva é organizada? E quais são as divisões do trabalho e do poder que as separam segundo critérios de raça e de gênero, e em função dos contextos mundiais, nacionais e locais? Além de examinar a composição atual do trabalho, devemos analisar também as relações de propriedade sob as quais o trabalho produz. Podemos dizer, com Marx, que a crítica da economia política é, fundamentalmente, uma crítica da propriedade. “Nesse sentido, os comunistas, escrevem Marx e Engels no Manifesto, podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada”1.
Para estudar a relação e a luta entre a propriedade e o comum, que considero fundamentais para a análise e a proposição comunistas, considero duas passagens de Marx retiradas dos Manuscritos filosóficos e econômicos de 1844. Não procuro, fazendo referência aos Manuscritos, opor o jovem Marx ao Marx da maturidade, a louvar o humanismo de Marx, ou qualquer coisa desse tipo. Trata-se, na realidade, de argumentos que têm continuidade no conjunto da obra de Marx. Não há necessidade de apelar ao mestre para renovar o conceito de comunismo. Os Manuscritos oferecem uma oportunidade de
1 K. Marx e F. Engels, Manifeste du parti communiste, Paris, Éditions 10/18, 1962, p. 37.
2
reconhecer o comum no comunismo, o que é cada vez mais pertinente hoje, mas também de medir a distância que separa a época de Marx da nossa.
Na primeira passagem, intitulada “A relação da propriedade privada”, Marx propõe uma periodização que coloca em evidência a forma dominante da propriedade privada em cada época. Na metade do século XIX, ele afirma, as sociedades européias não estavam mais essencialmente dominadas pela propriedade imobiliária, como a terra, mas sim pelas formas mobiliárias da propriedade, que eram em geral resultantes da produção industrial. O período de transição é marcado por uma batalha feroz entre as duas formas de propriedade. Marx, de maneira típica, ridiculariza as afirmações referentes ao benefício social dos dois tipos. O proprietário fundiário insiste na produtividade da agricultura e em sua importância vital para a sociedade, bem como para “a nobreza de nascimento de sua propriedade, as memórias feudais, as reminiscências, a poesia da lembrança, sua natureza romântica, sua importância política etc.» 2. O proprietário de bens mobiliários, ao contrário, ataca o provincianismo e o imobilismo do mundo da propriedade imobiliária, enquanto canta seus próprios louvores. “A propriedade mobiliária, escreve Marx, teria dado aos povos a liberdade política, quebrado as correntes da sociedade civil, reunido os mundos, criado o comércio filantrópico, a moral pura, a cultura e suas amenidades” (p. 131). Marx estima que é inevitável que a propriedade mobiliária venha a predominar, no plano econômico, sobre a propriedade imobiliária. “O movimento deve ter precedência sobre a imobilidade, a mesquinhez franca e consciente sobre a mesquinhez escondida e inconsciente e a ganância sobre o gosto do deleite, e assim o egoísmo frenético e multiforme das Lumières deve vencer o egoísmo limitado, sem malícia, preguiçoso e fantasista da superstition. “Do mesmo modo l’argent deve triunfar sobre toda outra forma de propriedade privada” (p. 132). Marx caçoa evidentemente desses dois proprietários, mas reconhece que a propriedade mobiliária, ainda que desprezível, apresenta a vantagem de revelar que “o trabalho é a única essência da riqueza” (p. 137). Em outros termos, a periodização que ele propõe coloca em evidência o potencial elevado para um projeto comunista.
2    K. Marx, Manuscrits de 1844, Paris, Flammarion, 1996, p. 130.
3
Analisarei uma luta atual equivalente entre duas formas de propriedade, mas devo, antes disso, observar que o triunfo da propriedade mobiliária sobre a imobiliária corresponde à vitória do lucro sobre a renda como modo de expropriação dominante. Na cobrança da renda, o capitalista é considerado como sendo relativamente exterior ao processo de produção do valor, uma vez que ele simplesmente recolhe o valor produzido por outros meios. A produção do lucro exige, ao contrário, o engajamento do capitalista no processo de produção, a imposição de formas de cooperação, de enquadramentos disciplinares etc. Na época de John Maynard Keynes, o lucro ganhou tal dignidade em relação à renda que ele pode prescrever “a eutanásia do rentista” e assim o desaparecimento do “capitalista ocioso” em favor do investidor capitalista que organiza e dirige a produção3. Esta concepção de uma passagem histórica da renda ao lucro no seio do capital corresponde igualmente à alegada passagem, em numerosas análises, da acumulação primitiva à produção capitalista propriamente dita. A acumulação primitiva, expropriando inteiramente a riqueza produzida em outro lugar, pode nesse contexto ser considerada como uma renda absoluta.
As transições da renda ao lucro e da predominância da propriedade imobiliária à da propriedade mobiliária fazem parte da afirmação mais geral de Marx segundo a qual em meados do século XIX a grande indústria substituiu a agricultura como forma hegemônica da produção econômica. Esta afirmação não se situa, evidentemente, no plano quantitativo. A produção industrial na época constituía uma pequena fração da economia, mesmo na Inglaterra, que era então o país mais industrializado. E a maioria dos operários trabalhava não nas fábricas, mas nos campos. A afirmação de Marx é, mais exatamente, qualitativa: todas as outras formas de produção serão obrigadas a adotar as características da produção industrial. A agricultura, a mineração e até a própria sociedade deverão adotar seus sistemas de mecanização, sua disciplina de trabalho, suas temporalidades e ritmos, sua jornada de trabalho e assim por diante. O artigo clássico de E. P. Thompson sobre os relógios e a disciplina do trabalho na Inglaterra é uma brilhante demonstração da imposição
3    J. M. Keynes, Théorie générale de l’emploi, de l’intérêt et de la monnaie, Paris, Éditions Payot, 1969, p. 369.
4
progressiva da temporalidade industrial ao conjunto da sociedade 4. Durante o século e meio que se seguiu a época de Marx, essa tendência da indústria a impor suas especificidades continuou com uma extraordinária intensidade.
Hoje, contudo, está claro que a indústria não ocupa mais a posição hegemônica no seio da economia. Isso não significa dizer que o número de pessoas trabalhando atualmente nas fábricas é menor que há 10, 20 ou 50 anos – ainda que, de certo ângulo, sua disposição tenha mudado, passando para o outro lado das divisões mundiais do trabalho e do poder. Ainda uma vez, esta afirmação se situa antes de tudo no nível qualitativo, e não no quantitativo. A indústria não mais impõe suas características a outros setores da economia e às relações sociais de modo mais geral. Está aí, parece-me, uma afirmação relativamente incontestável.
A controvérsia surge logo que se propõe outra forma de produção para suceder a indústria nesta posição hegemônica. Toni Negri e eu mesmo sustentamos que a produção biopolítica ou imaterial está assumindo este papel dominante.    Por imaterial ou biopolítico, tentamos apreender a produção das idéias, da informação, das imagens, dos conhecimentos, códigos, linguagens, relações sociais, afetos e assim por diante. Isso designa as atividades no conjunto da economia, do mais alto ao mais baixo nível da escala, do pessoal da saúde aos comissários de bordo, dos educadores aos criadores de softwares e dos empregados do fast-food e dos call centers aos publicitários. A maior parte dessas formas de produção não são, evidentemente, novas, mas a coesão entre elas é talvez mais manifesta e, sobretudo, suas qualidades tendem hoje a ser impostas a outros setores da economia e ao conjunto da
4    E. P. Thompson, “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism”, Past and Present, vol. 38, no 1, 1967, p. 56-97.
NT. Aqui, Hardt, cujo ponto de vista é americano e europeu, apenas parece exagerar um pouco. Em países onde os processos de industrialização da agricultura e dos serviços não se completaram, a indústria, em sentido estrito, continua a estender, na margem, seu modo de produzir a outros segmentos. Ademais, continua sendo um setor fundamental para a inovação tecnológica. Mas é importante perceber como isso não altera a proposição básica do autor. Mesmo nesses países mais atrasados, o capital industrial já deixou de ser dominante em relação ao capital financeiro e tende a ser sócio de uma “indústria sem plantas”, na medida em que se “terciariza” e se concentra no essencial: P&D, logística, marketing de produtos, gestão de marcas etc. A produção material, propriamente dita, fonte de lucros marginais, vem sendo, também nesses países, terceirizada (outsourced) e/ou transferida para regiões e países terceiros (offshored).
NT. Para os que desconhecem o léxico estruturador da obra de Negri e Hardt, o autor esclarecerá o conceito de “biopolítica” mais adiante (p. 12 e ss.).
5
sociedade. A indústria deve se informatizar; o saber, os códigos e as imagens se tornam sempre mais importantes em todos os setores tradicionais da produção; e a produção dos afetos e do cuidado – do “care” – tornam-se cada vez mais essenciais no processo de valorização. Esta hipótese, segundo a qual a produção biopolítica ou imaterial tem tendência a se apropriar da posição hegemônica que a indústria estava acostumada a ocupar, tem toda sorte de implicações para as divisões de gênero e as diversas divisões internacionais e geográficas do trabalho. Eu não poderia, entretanto, tratar delas neste artigo 5.
Se nos limitamos à nova luta entre as duas formas de propriedade que decorrem dessa transição, podemos retornar às formulações de Marx. Enquanto, em sua época, a luta se situava entre a propriedade imobiliária (por exemplo, a terra) e a propriedade mobiliária (como as mercadorias materiais), hoje, a luta opõe a propriedade material à propriedade imaterial. Ou, para dizer de outro modo, enquanto Marx acordava primazia à mobilidade da propriedade, o que hoje está fundamentalmente em jogo é a raridade e a reprodutibilidade, tanto que podemos dizer que a luta se situa entre a propriedade exclusiva e a propriedade compartilhada. É suficiente dar uma olhada, mesmo rápida, sobre o campo do direito dos bens para se dar conta de que a economia capitalista contemporânea está centrada sobre a propriedade reproduzível e imaterial. As patentes, os direitos de autor, os saberes locais, os códigos genéticos, a informação contida no germoplasma dos grãos e outros assuntos similares são os objetos mais ativamente debatidos nesse campo. O fato de que a lógica da raridade não seja válida nesse domínio coloca novos problemas para a propriedade. Da mesma maneira que Marx remarcava que o movimento triunfa necessariamente sobre a imobilidade, hoje, igualmente, o imaterial triunfa
NT. Negri e Hardt distinguem três tipos de “trabalho imaterial” que levam a produção de serviços para o “topo da economia informacional”. Primeiro, o trabalho “terciarizado” ou “servicilizado” na indústria em sentido estrito, graças ao uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação. Em segundo lugar, o trabalho baseado em tarefas analíticas e de manipulação simbólica, seja ele criativo ou rotineiro (uma categoria inspirada na classificação criada por Robert Reich em The Work of Nations: preparing ourselves for 21st century capitalism, 1991). Finalmente, um terceiro tipo que envolve a “produção ou manipulação de afeto e requer contato humano virtual ou real”; por exemplo, o trabalho em serviços como saúde ou assistência social. Ver M. Hardt e T. Negri, Empire, p. 289-294, disponível em: http://www.angelfire.com/cantina/negri/HAREMI_unprintable.pdf . 5    Sobre a produção biopolítica e imaterial, ver M. Hardt e T. Negri, Commonwealth, cap. 3, Cambridge, Harvard University Press.
6
sobre o material, a reprodutibilidade sobre o não-reproduzível, e o coletivo sobre o exclusivo.
A predominância emergente dessa nova forma de propriedade é importante em parte porque ela revela e remete ao centro da cena o conflito entre o comum e a propriedade enquanto tal. As idéias, as imagens, os conhecimentos, os códigos, as linguagens, e mesmo os afetos podem ser privatizados e controlados como propriedade, mas é mais difícil regulamentar sua posse porque eles são muito facilmente compartilhados e reproduzidos. Estes bens são submetidos a uma pressão constante para escapar às fronteiras da propriedade e se tornarem comuns. Se você tem uma idéia, o fato de compartilhá-la comigo, longe de diminuir a utilidade que ela possui para você, incrementa-a em geral. Na verdade, para realizar sua máxima produtividade, as idéias, as imagens e os afetos devem ser postos em comum e repartidos. No momento em que são privatizados, sua produtividade diminui consideravelmente. Acrescentaria, além disso, que o fato de transformar o comum em propriedade pública, isto é, de submetê-lo ao controle e à administração do Estado, reduz da mesma maneira a produtividade. A propriedade se torna um entrave ao modo de produção capitalista. Estamos aqui em presença de uma nova contradição interna ao capital: quanto mais o comum é estrangulado como propriedade, mais sua produtividade é reduzida; e, no entanto, a expansão do comum sapa as relações de propriedade de uma maneira geral e fundamental.
Poder-se-ia dizer, em termos bastante gerais, que o neoliberalismo foi determinado pela luta entre a propriedade privada não somente contra a propriedade pública, mas também e talvez fundamentalmente contra o comum. É útil estabelecer aqui uma distinção entre dois tipos de comum, que são ambos objetos das estratégias neoliberais do capital. (E isso pode servir de definição inicial do “comum”). De um lado, o comum designa o planeta e todos os recursos que lhes são associados: a terra, as florestas, a água, o ar, os minerais e assim por diante. Esta definição está estreitamente relacionada ao significado em inglês dos “commons” (no plural) no século XVII. De outro lado, o comum remete igualmente, como eu já havia dito, aos resultados da criatividade e do trabalho humanos, tais como as idéias, a linguagem, os afetos
7
etc. Pode-se considerar o primeiro como o comum “natural” e o segundo como o comum “artificial”, mas, na realidade, tais divisões entre o natural e o artificial desaparecem rapidamente. E, de qualquer modo, o neoliberalismo procurou privatizar ambas as formas do comum.
Uma dos cenários principais dessa privatização foi a indústria extrativa, que permitiu às corporações transnacionais ter acesso aos diamantes em Serra Leoa, ao petróleo em Uganda, ou aos depósitos de lítio e aos direitos de uso da água na Bolívia. Tal privatização neoliberal do comum foi descrita por numerosos autores, inclusive por David Harvey e Naomi Klein, em termos que assinalam a grande importância da acumulação primitiva ou da acumulação por despossessão 6.
As estratégias neoliberais de privatização do comum “artificial” são bem mais complexas e contraditórias. Neste caso, o conflito entre a propriedade e o comum está plenamente em jogo. Como já disse, quanto mais o comum é submetido às relações de propriedade, menos ele é produtivo; e, apesar disso, os processos de valorização capitalistas tem necessidade da acumulação privada. Em vários domínios, as estratégias capitalistas de privatização do comum, através de mecanismos como as patentes e os direitos de autor, prosseguem (muitas vezes com dificuldades) a despeito das contradições. Na indústria da música e na de informática os exemplos se multiplicam. Isso vale também para a pretensa biopirataria, vale dizer, para os processos pelos quais as corporações transnacionais expropriam o comum sob a forma de saberes locais ou de informação genética tirada das plantas, dos animais e dos humanos, em geral por meio do recurso às patentes. Os conhecimentos tradicionais relacionados ao uso de uma substância natural como pesticida, por exemplo, ou as qualidades curativas de uma planta são transformadas em propriedade privada pela empresa que patenteia o saber. Gostaria, de passagem, sublinhar o fato de que a pirataria é um termo inapropriado para designar tais atividades. Os piratas têm uma vocação bem mais nobre: eles
6    Ver David Harvey, A Brief History of Neoliberalism, Oxford, Oxford University Press, 2005; e Naomi Klein, La Stratégie du choc, Actes Sud, 2008. Encontramos uma excelente análise do foco do neoliberalismo nas indústrias extrativas na África em James Ferguson, Global Shadows: Africa in the Neoliberal World Order, Durham, Duke University Press, 2006.
8
roubam a propriedade. Estas grandes empresas roubam de preferência o comum e o transformam em propriedade.
Em geral, contudo, o capital realiza a expropriação do comum não através da privatização enquanto tal, mas sob a forma da renda. Vários economistas franceses e italianos contemporâneos que trabalham com o que eles chamam de capitalismo cognitivo, e, em particular, Carlo Vercellone, afirmam que se, em um período precedente, o modo dominante de expropriação capitalista se caracterizava por um movimento tendencial da renda para o lucro, nós assistimos hoje ao movimento inverso, do lucro para a renda 7. As patentes e os direitos de autor, por exemplo, criam uma renda na medida em que eles garantem um rendimento baseado na posse de uma propriedade material ou imaterial. Este argumento não implica um retorno ao passado: o rendimento produzido por uma patente, por exemplo, é muito diferente daquele produzido pela propriedade fundiária. A idéia essencial dessa análise da predominância crescente da renda sobre o lucro, que acredito muito reveladora, é que o capital continua em geral externo aos processos de produção do comum. Enquanto que, no caso do capital industrial e da criação de seu lucro, o capitalista desempenha um papel interno ao processo de produção, notadamente ao determinar os meios da cooperação e impondo os modos de disciplina, na produção do comum, o capitalista deve ficar relativamente de fora 8. Toda intervenção do capitalismo no processo de produção do comum, como cada apropriação do comum, reduz a produtividade. A renda é, assim, um mecanismo que permite resolver os conflitos entre o capital e o comum. O processo de produção do comum goza de uma autonomia limitada em relação à partilha dos recursos e à determinação dos modos de cooperação, e o capital é sempre capaz de exercer um controle e de expropriar o valor através da renda. A exploração nesse contexto toma a forma da expropriação do comum.
De um lado, essa análise da renda revela os processos neoliberais de acumulação por despossessão, na medida em que a acumulação primitiva
7    Ver, por exemplo, Carlo Vercellone, “Crisi della legge del valore e divenire rendita del profitto”, em Crisi dell’economia globale, sob a direção de Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra, Vérone, Ombre corte. 8    Ver a análise da cooperação por Marx no capítulo 13 do Capital, I, Lachâtre, 1872.
9
pode ser qualificada como forma de renda absoluta. De outro, ela apresenta sob uma ótica nova a predominância contemporânea da finança, que se caracteriza por variedades complexas e muito abstratas de renda relativa. Christian Marazzi nos põe em guarda contra a concepção segundo a qual a finança teria qualquer coisa de fictícia, por oposição à “economia real”, uma concepção que não compreende a que ponto a finança e a produção são, todas as duas, cada vez mais dominadas pelas formas imateriais da propriedade. Ele nos coloca igualmente em guarda contra a tentação de rejeitar a finança ao considerá-la simplesmente como improdutiva, por oposição a uma imagem da produtividade mais ou menos ligada à produção industrial. É mais útil situar a finança no contexto da tendência geral do lucro em direção à renda, e da posição externa concomitante do capital em relação à produção do comum. A finança expropria o comum e exerce um controle à distância 9.
Posso agora concluir e reexaminar os primeiros pontos de minha leitura daquela primeira passagem retirada dos manuscritos de juventude de Marx, na qual ele descreve a luta entre duas formas de propriedade (imobiliária contra mobiliária) e a passagem histórica da predominância da propriedade fundiária para a hegemonia do capital industrial. Também assistimos hoje a uma luta entre duas formas de propriedade (material contra imaterial ou rara contra reprodutível). E esta luta revela um conflito mais profundo entre a propriedade como tal e o comum. Embora a produção do comum seja cada vez mais central para a economia capitalista, o capital não poder intervir no processo de produção e deve assim permanecer exterior a ele, expropriando o valor sob a forma da renda (pelo viés de mecanismos financeiros e outros). Disso decorre que a produção e a produtividade do comum se tornem um domínio cada vez mais autônomo, sempre explorado e controlado, bem entendido, mas através de mecanismos que são relativamente externos. Seguindo Marx, eu diria que esta evolução do capital não é boa em si mesma – a predominância tendencial da produção biopolítica ou imaterial se acompanha de um conjunto de formas novas e mais estritas de exploração e de controle. Entretanto, é importante reconhecer que a própria evolução do capital fornece os instrumentos para se
9    Ver Christian Marazzi, Capital and Language, trans. Gregory Conti, New York, Semiotext(e), 2008.
10
libertar dele, e aqui, em particular, ela conduz a uma autonomia crescente do comum e de seus circuitos produtivos.
Isso me conduz à segunda passagem dos Manuscrits que gostaria de examinar: “Propriedade privada e comunismo”. A noção de comum nos ajuda a compreender o que Marx quer dizer por comunismo neste texto. “O comunismo, escreve ele, é a expressão positiva da propriedade privada abolida” (p. 141). Ele inclui tais termos – “expressão positiva” – notadamente para diferenciar o comunismo das noções falsas ou corrompidas do conceito. O comunismo vulgar, afirma Marx, simplesmente perpetua a propriedade privada generalizando-a e a estendendo à comunidade inteira, como propriedade privada universal. Este termo é evidentemente um oximoro: se a propriedade é a partir desse momento universal, estendida a toda comunidade, então ela não é mais realmente privada. Parece-me que ele tenta sublinhar assim que, no comunismo vulgar, mesmo se o caráter privado foi extirpado, a propriedade permanece. O comunismo convenientemente concebido é a abolição não apenas da propriedade privada, mas da propriedade enquanto tal. “A propriedade privada nos tornou de tal modo obtusos e limitados que um objeto é nosso unicamente quando nós o temos” (p. 148). Que significaria o fato de que qualquer coisa seja nossa se não possuímos esta coisa? Que significaria o fato de considerar o mundo e nós mesmos de uma maneira diferente do que como propriedades? A propriedade privada nos tornou a tal ponto estúpidos que somos incapazes de ver isso? Marx investiga aqui o comum. O acesso e a partilha livres que caracterizam o uso do comum são exteriores e hostis às relações de propriedade. Ficamos tão estúpidos que só podemos conceber o mundo ou como privado ou como público. Tornamo-nos cegos ao comum.
Marx chega a uma versão do comum (enquanto abolição da propriedade privada) cerca de vinte anos mais tarde no primeiro tomo do Capital, quando define o comunismo como o resultado da dialética negativa do capital. “O modo de apropriação capitalista originado do modo de produção capitalista, a propriedade capitalista, portanto, é a negação primeira da propriedade privada individual, fundada sobre o trabalho feito pelo indivíduo. Mas a produção capitalista engendra por sua vez, com a inevitabilidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Esta não restabelece a
11
propriedade privada, mas, de toda maneira, a propriedade individual fundada nas próprias conquistas da era capitalista: sobre a cooperação e a propriedade comum da terra e os meios de produção produzidos pelo trabalho propriamente dito 10. O desenvolvimento capitalista leva inevitavelmente ao papel cada vez mais central da cooperação e do comum, o que por sua vez fornece os instrumentos para reverter o modo de produção capitalista, e constitui as bases para uma sociedade e um modo de produção alternativos, um comunismo do comum.
O que me parece, contudo, insatisfatório nesta passagem retirada do Capital, deixando de lado sua construção dialética, é que o comum ao qual Marx faz referência – “a cooperação e a possessão comum de todos os meios de produção, inclusive o solo” – compreende principalmente os elementos materiais em questão, as formas imobiliárias e mobiliárias da propriedade tornada comum. Dito de outro modo, esta formulação não abarca as formas dominantes da atual produção capitalista. No entanto, se olharmos de novo a passagem nos Manuscritos de juventude e tentarmos abstrair o humanismo juvenil de Marx, encontraremos uma definição do comunismo e do comum que coloca em destaque os aspectos imateriais, ou melhor, biopolíticos. Tomemos, de início, esta definição do comunismo que Marx propõe após ter afastado a noção vulgar: “O comunismo é, enquanto abolição positiva da propriedade privada (ela própria auto-alienação humana), apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem. É o retorno completo do homem a ele mesmo enquanto ser para si, isto é, como ser social, humano” (p. 144). O que Marx quer dizer por “apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem”? Claramente, ele trabalha sobre a noção de apropriação à contracorrente, aplicando-a a um contexto no qual ela parece estranha: não é mais a apropriação do objeto sob a forma da propriedade privada, mas a apropriação de nossa própria subjetividade, de nossas relações sociais e humanas. Marx explica esta apropriação comunista, esta apropriação não- apropriativa do ponto de vista do sensorium [somatório de sensações] humano e do conjunto das potências produtivas e criativas. “O homem se apropria de seu ser universal de uma maneira universal”, o que ele explica levando em
10    K. Marx, Le Capital, I, PUF, Coll. “Quadrige”, 1993, p. 856-857.
12
conta “cada uma de suas relações humanas com o mundo, a vista, a audição, o olfato, o gosto, o tato, o pensamento, a contemplação, o sentimento, a vontade, a atividade, o amor” (p. 148). Penso que aqui o termo “apropriação” é enganador, na medida em que Marx não fala de tomar posse de qualquer coisa que já existe, mas sim de criar alguma coisa nova. Trata-se da produção da subjetividade, a produção de um novo sensorium – logo, não realmente da apropriação, mas sim da produção. Se voltarmos ao texto, poderemos ver que Marx exprime isso, na verdade, nitidamente: “Na hipótese da abolição positiva da propriedade privada, o homem produz o homem, se produz a si mesmo e produz o outro homem” (p. 145). Segundo esta leitura, a noção de comunismo de Marx nos manuscritos de juventude está longe do humanismo, vale dizer, longe de todo recurso a uma essência humana eterna ou pré-existente. Mais exatamente, o conteúdo positivo do comunismo, que corresponde à abolição da propriedade privada, é a produção humana autônoma da subjetividade, a produção humana da humanidade – uma nova forma de ver, de ouvir, de pensar, de amar.
Isso nos traz de volta à nossa análise da guinada biopolítica na economia. No contexto da produção industrial, Marx chegou ao importante reconhecimento de que a produção capitalista tem por meta criar não somente os objetos, mas também os sujeitos. “De certo modo, a produção não produz apenas um objeto para seu sujeito, mas também um sujeito para seu objeto11·. No contexto da produção biopolítica, entretanto, a produção da subjetividade é bem mais direta e intensa. Na realidade, certos economistas contemporâneos analisam a transformação do capital em termos que ecoam a formulação de Marx que encontramos nos manuscritos de juventude. “Se devêssemos arriscar uma aposta sobre o modelo emergente das próximas décadas”, afirma, por exemplo, Robert Boyer, “é provavelmente à produção do homem pelo homem a que seria necessário nos referir12”. Christian Marazzi entende de modo similar que a evolução atual na produção capitalista tende para um “modelo antropogenético”. Os seres vivos concebidos como capital fixo estão no centro desta transformação e a produção de formas de vida se torna a base do valor
11    K. Marx, Manuscrits de 1857-1858, Paris, Éditions Sociales, 1980, p. 26. 12    R. Boyer, La Croissance début de siècle, Paris, Albin Michel, 2002, p. 192.
13
agregado. Trata-se de um processo no qual as faculdades humanas, as competências, os conhecimentos e os afetos postos a serviço – aqueles adquiridos no trabalho, mas, sobretudo, os que são acumulados fora do trabalho – produzem diretamente valor13. Uma característica distintiva do trabalho da cabeça e do coração é, portanto, que, paradoxalmente, o objeto da produção é na realidade um sujeito, definido, por exemplo, por uma relação social ou uma forma de vida. Isso deveria esclarecer a razão pela qual qualificamos de biopolítica esta forma de produção, uma vez que são formas de vida que são produzidas.
Se voltarmos à Marx nesta nova ótica, descobriremos que a evolução das definições do capital na sua obra nos oferece uma pista importante para a análise desse contexto biopolítico. Ainda que a riqueza na sociedade capitalista apareça em primeiro lugar como um imenso acúmulo de mercadorias, Marx revela que o capital é na realidade um processo de criação de mais-valia por meio da produção de mercadorias. E Marx aprofunda ainda esta idéia para descobrir que, na sua essência, o capital é uma relação social – ou, dito de outra maneira, para avançar ainda mais nesta direção: o objeto último da produção capitalista não é o conjunto das mercadorias, mas as relações sociais ou as formas de vida. Do ponto de vista da produção biopolítica, podemos ver que a produção da geladeira e a do automóvel são somente vetores para a criação das relações de gênero e de trabalho da família nuclear em torno da geladeira, e da sociedade de massa de indivíduos isolados nos seus carros sobre a rodovia.
Coloquei em evidência a correspondência ou a proximidade entre a definição do comunismo que encontramos em Marx e a reviravolta biopolítica contemporânea da economia capitalista, ambas estando orientadas para a produção humana da humanidade, das relações sociais e das formas de vida – todas no contexto do comum. Devo, alcançado este ponto, explicar como considero esta proximidade e porque ela é importante. Mas, antes disso, permitam-me adicionar ainda um elemento a este conjunto.
13    C. Marazzi, “Capitalisme digitale e modello antropogenetico di produzione”, em Reinventare Il lavoro, sob a direção de Jean-Louis Laville, Roma, Sapere, 2000, 2005, p. 107-126.
14
Michel Foucault está perfeitamente consciente da singularidade e da riqueza do raciocínio que conduz Marx à conclusão de que “o homem produz o homem” (utilizando como Marx a formulação de gênero). Ele nos põe em guarda contra o fato de que não deveríamos compreender a frase de Marx como uma expressão de humanismo. “Para mim, o que deve ser produzido, não é o homem como a natureza o teria desenhado, ou como sua essência o prescreve; temos de produzir qualquer coisa que não existe ainda e da qual não podemos saber o que será.” Ele nos coloca igualmente em guarda contra o entendimento dessa frase como um prolongamento da produção econômica tal como ela é convencionalmente concebida: “Não estou de acordo com os que entenderiam que esta produção do homem pelo homem se faz como a produção do valor, a produção da riqueza ou de um objeto de uso econômico; é da mesma maneira a destruição do que nós somos e a criação de uma coisa totalmente outra, de uma inovação total14·. Em outros termos, não podemos compreender esta produção sob o ângulo do sujeito produzindo e do objeto produzido. Em vez disso, produtor e produto são ambos sujeitos: os humanos produzem e os humanos são produzidos. Foucault advinha com nitidez (sem parecer entendê-la completamente) a natureza explosiva desta situação: o processo biopolítico não é limitado à reprodução do capital enquanto relação social, mas ele apresenta igualmente o potencial para se tornar um processo autônomo que pode destruir o capital e criar qualquer coisa inteiramente nova. A produção biopolítica implica evidentemente novos mecanismos de exploração e de controle capitalista, mas deveríamos também reconhecer, seguindo nisso a intuição de Foucault, que a produção biopolítica, particularmente pelo modo pelo qual ela excede os limites das relações capitalistas e se reporta constantemente ao comum, confere ao trabalho uma autonomia cada vez mais importante e fornece os instrumentos ou armas que poderiam ser manejadas em um projeto de liberação.
Estamos agora em posição de compreender o interesse que apresenta o fato de reconhecer a proximidade entre a idéia de comunismo e a produção capitalista contemporânea. A idéia não é que o desenvolvimento capitalista cria
14    M. Foucault, “Entretien”, Dits et écrits, vol. IV, Paris, Gallimard, 1994, p. 41-95, citação p. 74. Nesse trecho da entrevista, Foucault discute seus desacordos com a Escola de Frankfurt.
15
o comunismo ou que a produção biopolítica aporta diretamente ou imediatamente a liberação. Na realidade, é através da centralidade crescente do comum na produção capitalista – a produção das idéias, dos afetos, das relações sociais e das formas de vida – que as condições e as armas para um projeto comunista emergem. O capital, em outros termos, cria seus próprios coveiros15.
Tentei neste artigo examinar dois pontos essenciais. O primeiro é uma evocação à crítica da economia política ou, mais precisamente, a afirmação de que todo projeto comunista deve começar aqui. Uma análise deste tipo utiliza melhor nossas periodizações e revela as novidades do nosso presente momento, na medida em que procede a um exame não apenas da composição do capital, mas também da composição das classes – dito de outro modo, interrogando-se sobre a maneira pela qual as pessoas produzem, sobre o que elas produzem e sob quais condições, ao mesmo tempo no interior e no exterior do local de trabalho, ao mesmo tempo dentro e fora das relações do trabalho assalariado. E sustento que tudo isso revela a centralidade incrementada do comum.
O segundo ponto estende a crítica da economia política à crítica da propriedade privada. Notadamente, o comunismo é definido não apenas pela abolição da propriedade privada, mas também pela afirmação do comum – a afirmação da produção biopolítica autônoma e livre, a criação contínua e independente de uma nova humanidade. Em termos mais sintéticos, o comum está para o comunismo, como a propriedade privada está para o capitalismo e a propriedade pública para o socialismo.
15    Seria interessante, aqui, analisar a relação entre esta discussão econômica do comum e a maneira pela qual o comum funciona na noção de política de Rancière. “A política, ele escreve, começa precisamente lá onde se cessa de equilibrar lucros e perdas, onde ocupa-se de repartir as partes do comum”, La Mésentente, Paris, Galilée, 1995, p. 24. O comum, segundo a concepção de Rancière, é o terreno central, e talvez exclusivo, da partilha, isto é, do processo de divisão, de distribuição, da repartição. “A política, prossegue Rancière, é a esfera da atividade de um comum que só pode ser litigioso, a relação entre as partes que são apenas partidos e das cotas cuja adição é sempre diferente do todo”, p. 34-35. Talvez o comunismo, tal qual concebo aqui, seja a única forma que qualifique para Rancière a noção do político: a partilha do comum. Analiso rapidamente o papel do comum no pensamento de Rancière em “The Production and Distribution of the Common”, Open: Cahier on Art and the Public Domain, no 16, p. 20-31.
16
Reunindo estas duas idéias – que a produção capitalista depende cada vez mais do comum e que a autonomia do comum é a essência do comunismo – constata-se que as condições e as armas para um projeto comunista estão hoje mais que jamais disponíveis. Temos de trabalhar agora para sua organização.
17

Adv.André Barros