Há uma percepção generalizada que o sistema financeiro é responsável pela crise da economia global. A culpa estaria no excesso de ganância dos mercados, na especulação em detrimento do desenvolvimento, do risco moral e individualismo por parte dos financistas e banqueiros. Essas leituras da crise de uma forma ou de outra costumam conferir um grau de separação entre a “economia real” e as finanças. Como se a saída da crise estivesse em voltar a valorizar mais a primeira. Por isso, prescrevem maior atenção no desenvolvimento do chamado “setor produtivo”, enquanto o “setor financeiro” exigiria maior regulamentação por parte dos estados. Essas leituras deixam de analisar a fundo o vínculo orgânico entre finanças e produção.
Como funciona esse vínculo?
No mundo hoje, a maior fatia do dinheiro não se compõe do papel-moeda como o conhecemos, mas de dívida. É que o dinheiro também é gerado quando bancos emitem débitos sobre si mesmos, virtualmente do nada. As instituições bancárias possibilitam que o dinheiro exista não só como meio de pagamento atual, mas também como promessa de pagamento. Dessa maneira, o sistema financeiro capitaliza o futuro, o que se dá com a emissão de títulos de crédito que representam essas promessas. Ocorre uma entrada antecipada de liquidez (mais dinheiro), atrelada ao pagamento futuro da parte dos tomadores do crédito.
Por exemplo. O sujeito resolve comprar um apartamento a crédito. Vai ao banco, que, preenchidas certas condições, resolve financiar a totalidade do preço de compra. Em contrapartida, é constituída uma hipoteca ou alienação fiduciária. O sujeito recebe todo o dinheiro agora, mas fica vinculado ao pagamento de prestações periódicas, acrescidas de juros e correção, até conseguir quitar o montante total.
Contrariamente ao senso comum, esse fluxo de investimento não está lastreado em alguma riqueza pré-existente. O banco cria o dinheiro ao emprestá-lo ao financiado. A bem da verdade, cria muito mais dinheiro do que o valor efetivamente emprestado. Porque o título correspondente à hipoteca ou fidúcia se desdobra noutros títulos, os derivativos (ou títulos de crédito derivados), que também circulam. Por exemplo, os derivativos que representam a securitização do crédito inscrito no papel original. Por securitização, se entende a repartição sistemática dos riscos (de o devedor não pagar, ou quitar antes da hora, cortando os juros). Isso geralmente ocorre entre o banco que financiou e outras instituições financeiras, como fundos de pensão, fundos de investimento, dívidas públicas etc, que julgam interessante participar do risco para também colher uma fração dos juros e rendimentos.
Essa multiplicação de produtos financeiros injeta ainda mais liquidez, mais dinheiro, mais base monetária para a economia. No final do ano passado, o mercado global de derivativos totalizou US$ 1.200 trilhões (ou 1,2 quatrilhões de dólares), muito mais que o PIB mundial (US$ 70 trilhões) e 50% mais que o volume existente quando da disparada da crise dos subprimes, em 2007-08 (quase US$ 800 trilhões).
Mas o que isso significa?
Significa que o bom funcionamento da economia global está subordinado ao cumprimento das promessas que originam os títulos. Esses fabulosos fluxos de investimento só podem vingar se, no refluxo, na hora das cobranças, acontecer o esperado pagamento das parcelas prometidas. O verdadeiro lastro sobre o dinheiro não é o ouro, o papel-moeda, o banco central, o PIB atual ou outra medida de riqueza existente, mas a confiança. A confiança integrada no próprio sistema financeiro em ser solvável, em garantir a solidez das dívidas e sua titularização, o ritmo equilibrado entre fluxos e refluxos de crédito e débito. Todo o jogo não está baseado na moralidade ou equivalência das operações financeiras, mas no poder de vincular e controlar o futuro, isto é, de governar a não-equivalência, o surplus.
Voltemos ao exemplo do apartamento financiado. Quando o sujeito se dirige ao banco, precisa comprovar a sua capacidade de sustentar os pagamentos ao longo do tempo. Se ele apresentar as credenciais corretas, o banco concorda em emitir o crédito (o dinheiro). Esse dinheiro está lastreado, portanto, na expectativa do futuro dessa pessoa, bem como na capacidade de essa expectativa ser garantida (pelo judiciário, polícia, pela construção de uma moral). Quanto mais “sob controle” esse futuro estiver, quanto mais confiável, menor o risco do investimento, e o risco sistêmico como um todo. O mercado de futuros e derivativos, portanto, reflete a capacidade de o banco prever, vincular e controlar o comportamento da massa de endividados, a fim de gerar rendimentos (os juros) para os credores. Com o desmonte do estado de bem estar social, a popularização do crédito se torna cada vez mais o caminho preferencial para a pessoa ter acesso à moradia, a transporte (leasing, prestações), à previdência (fundo de pensão), ao consumo (cartão de crédito), ao turismo, à saúde (plano de saúde), à educação (bolsas) etc. A massa de endividados tende cada vez mais a coincidir com a massa de trabalhadores.
Daí que, no fundo, essa confiança sistêmica está baseada na capacidade de extrair uma renda da massa de trabalhadores, por meio dos juros. A confiança em questão consiste no poder de o sistema pôr as pessoas para produzir e trabalhar, e assim permanecerem solváveis, bem como em garantir que elas paguem. Elas precisam trabalhar para gerar um excedente de seus rendimentos para o pagamento periódico dos juros e, futuramente, do principal da dívida. Assim, o lastro do dinheiro-crédito não reside na moralidade ou eficiência do sistema. A confiança, no fundo, reside na capacidade de o governo e o sistema financeiro exigirem e obterem de nós, os devedores, que trabalhemos e produzamos ininterruptamente um fluxo de excedente, um retorno garantido, um mais-valor.
Não se trata de um jogo equilibrado entre oferta e demanda. Há uma assimetria no vaivém de fluxos e refluxos. De um lado, a classe rentista; do outro, a devedora; e entre elas uma permanente transferência de renda. O sistema financeiro sempre fica com um a-mais, na figura dos juros. Menos por ganância do que por uma exigência funcional de lastrear a monetização da economia e acumular riqueza aos investidores, reproduzindo relações sociais desiguais. Correm em paralelo dois processos intrinsecamente conectados: crédito/finanças de um lado, produtividade social do outro, e a forma dessa conexão orgânica é a base da economia real mesma, o capitalismo. Um e outro processo se mobilizam reciprocamente, governando as populações e vinculando os comportamentos ao funcionamento geral do sistema.
Contrariamente ao que pregam alguns economistas, o desequilíbrio atual, a crise não nasceu no fato de um lado ter inflacionado de modo desproporcional ao outro. O desequilíbrio é intrínseco desta forma de organização social e reside no fato que o lado da produtividade social, do trabalho vivo, precisa estar implacavelmente vampirizado e controlado, e que a expansão das rendas e a acumulação das riquezas estarem determinadas essencialmente pelo endividamento e exploração do trabalho das populações. Se a confiança sistêmica se baseia neste processo assimétrico, o pretendido “equilíbrio” só poderia mistificar a relação de força e controle social, essencialmente desigual, que faz funcionar a economia real contemporânea, que é a economia financeirizada.
Dito isto, a moradia é privilegiada para a governança social do capitalismo por dois motivos.
Primeiro, por ser um desejo quase universal e envolver um investimento substantivo a ponto de vincular a família a compromissos sérios de trabalho, produção e estabilidade. Segundo, por facilitar escaladas de sobrevalorização associadas a projetos urbanísticos de revitalização (gentrificação, remoção de pobres) pelo poder constituído. Não admira a expansão do crédito e da base monetária vir acompanhada de um inflacionamento desarrazoado dos preços dos imóveis e aluguéis, a partir de uma ação coordenada entre governos, imobiliárias e bancos de investimento. Tem-se assim um modo eficaz de fechar o circuito capitalista entre rentismo, propriedade e trabalho.
Portanto, a moradia e em maior escala a metrópole se torna um terreno extremamente interessante na perspectiva dos movimentos sociais. Pelo mesmo motivo de sua centralidade como elemento da governança, mas invertido. A retomada do poder sobre a produção (presente e futura), dessa potência líquida que as finanças exprimem, encontra nas lutas da cidade um front estratégico. Foi o que aconteceu nos EUA e na Europa, onde a insurreição foi em boa parte pautada pela questão da moradia, qualificando os movimentos insurgentes, no 15-M e no Occupy. E é o que pode suceder no Brasil, com tantos projetos de gentrificação e inflação imobiliária em curso. Embora, dentro do contexto mundial, por aqui a financeirização (ainda) não se encontre num estágio crítico de refluxo, é desejável, desde já, compreender as lutas pela moradia como contrapoder ao controle que as finanças exercem sobre o trabalho da metrópole. Expor e desenvolver o vínculo entre finanças e produção é indispensável para o presente horizonte de lutas.
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