O racismo e o machismo e a homofobia não estão apenas na cabeça das pessoas. São forças que estruturam as relações sociais. Uma democracia não depende apenas dos direitos em si, mas das condições materiais de exercício dos direitos. A discriminação incide nessas condições tão prementes e vívidas. Embora negros e mulheres tenham os mesmos direitos, não desfrutam das mesmas situações concretas, possibilidades e oportunidades. Daí findam marginalizados. Na democracia de fachada, alguns são mais iguais do que outros.
Não é suficiente combater o preconceito somente coibindo-o nos indivíduos. Seria tentar salvar o paciente matando a cobra, mas não o veneno inoculado. É preciso desarmar as condições materiais, o apartheid com fundo histórico-social ou político-econômico. Por isso, tão fundamentais as ações afirmativas, que atacam as causas e não meramente os efeitos de superfície. Por isso também, a pouca efetividade de intensificar medidas punitivas, cujo maior rendimento tem sido conferir palanque aos vingadores de plantão, sem encostar o dedo na materialidade social dos preconceitos.
Tem-se que ir além do chavão que a liberdade de um termina onde começa a do outro. Com esse raciocínio puramente formal, então a liberdade da minoria termina rapidinho, ao chocar-se com a imensa liberdade material da maioria:
Sua liberdade termina onde começa a minha… opa, já acabou!
Minoria não se trata de um conceito quantitativo, mas qualitativo. O homem branco rico diplomado do Sul/Sudeste é majoritário, mesmo que numericamente não perfaça 5% da população. É o WASP brasileiro, o protagonista dos comerciais televisivos, o profissional modelo, o bom partido, o marido ideal. É aí que se insere a discussão sobre movimentos sociais identitários. O movimento identitário, como o nome sugere, pauta-se pela afirmação ferrenha de sua identidade, isto é, tenta lutar para também ser majoritário. Nisso, ele é dialético no mau sentido, porque se define pelo que nega e, por isso, entra no jogo do inimigo, ao espelhar suas demandas nele. Apesar de alguns considerarem os identitários “muito radicais”; na verdade são bem menos radicais do que movimentos que valorizam exatamente o que têm de minoritário. Em vez de competir invejosamente com a força majoritária, procuram constituir um outro mundo em que essa distinção opressiva não faz mais sentido, desarticulando a própria lógica majoritária.
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Por que alguém, que não é racista ou machista ou homófobo, acha graça numa brincadeira preconceituosa? Justamente porque mexe com a parte conservadora e proto-fascista de nosso imaginário. Ou se preferir, com determinada produção de subjetividade, induzida pelo poder-saber dominante. É o momento que essas forças reativas, — contra as quais lutamos dentro de nós mesmos, — são excitadas a manifestar-se. A hora da verdade acontece nas crises: quando somos abalroados por uma mulher ao volante, quando perdemos uma vaga na universidade para um negro com menor nota, quando a nossa namorada nos troca por outra mulher. Justamente aí, quando somos interpelados nesse nível profundo, põe-se à prova a nossa determinação em não sermos fascistas.
No fundo, não se é moralista ao reprovar uma piada racista ou um comentário machista. Muitos tacham essa reprovação como patrulhamento, politicamente correto ou moralista. Por um lado, a crítica da crítica pode servir para questionar o movimento identitário, que amiúde se julga intocável, como agudamente escreveu Moysés Pinto Neto no Ingovernável. Mas por outro, muitas vezes não passa de reedição surrada do argumento da igualdade formal, das “liberdades”:
Todos têm os mesmos direitos: do mesmo modo que faço piadas de loiras e pretos e judeus, eles podem me sacanear por ser branquelo… não sejamos tão chatos e moralistas, piada é pra rir, né!
Sim, ria. Só não se engane, esse riso que é moralista e politicamente correto, não o inverso, a minha crítica dele como manifestação de uma força majoritária na sociedade. Reclamar de piadas contra negros e mulheres e gays não pode ser moralista, uma vez que a moral hegemônica no Brasil está saturada desses mesmos preconceitos.
A bem da verdade, politicamente correto não é quem reprova piada machista; mas o machismo ele mesmo, que é o correto histórico-político, o majoritário nesta sociedade desigual. Imoral sou eu que desafio um arranjo dominante, ainda que recalcado e espertamente negado. E não admira os “imoralistas” passem corretivos contra quem luta por um outro mundo, contra quem não admita reforçar uma desigualdade tão violenta e injusta, mesmo (e sobretudo) sob a forma “cordial” do humor.